Maio, 2024 - Edição 300
Índia: uma guarânia
Difícil explicar o fascínio de uma música sobre um povo, a
ponto de elegê-la uma canção nacional. Foi o que aconteceu com
a guarânia “Índia”, do compositor paraguaio José Assuncion Flores
(1904-1972), com letra do poeta Manuel Ortiz Guerreiro (1897-1933).
Como esquecer o retrato dessa mulher de sangue tupi, sensual,
de cabelos negros caídos nos ombros, lábios de rosa que incitam ao
beijo, cheiro de flor e olhar meigo e doce? O amante sabe que partirá
em breve, mas deseja tomá-la nos braços por alguns instantes, para
levar a sua imagem para sempre.
A guarânia de ritmo lento chegou ao Brasil em 1952 nas vozes
da dupla sertaneja Cascatinha e Inhana, numa versão em português de grande sucesso. Vários outros intérpretes, como Gal Costa e
Roberto Carlos, deram novos tons e roupagens, com aquela força de
quem expressa seus sentimentos e coloca todo o Paraguai dentro do
coração.
A índia idealizada romântica tem em Iracema o mais perfeito retrato. Personagem do romance de mesmo nome escrito pelo
cearense José de Alencar (1822-1877). Conta o amor de um branco,
Martim, pela índia Iracema, “a virgem dos lábios de mel”. A própria
palavra Iracema significa “mel de abelhas”. Trata-se de uma alegoria
para a formação da nação brasileira. Iracema é a própria América, a
natureza de “mares bravios”, e Martim, o português colonizador, a
cultura europeia. Iracema pertence à tribo tabajara, é filha do pajé,
uma espécie de sacerdotisa vestal que guarda o segredo da jurema,
bebida ritual. Martim é aliado dos pitiguaras, inimigos dos tabajaras
e está perdido em território selvagem e misterioso, numa jornada de
tensões. Iracema leva Martim a um bosque e lhe oferece o alucinógeno. Da união dos dois nasce Moacir, o “filho da dor e do sofrimento”,
um brasileiro miscigenado. Quando Martim parte em sua caravela,
Iracema definha em tristeza, saudade e solidão.
A prosa do livro Iracema é poética e paira até hoje sobre a
Lagoa de Parangaba onde a índia costumava mergulhar: “Um dia, ao
pino do sol, ela repousava em um claro da floresta. Banhava-lhe o
corpo a sombra da oiticica, mais fresca do que o orvalho da noite. Os
ramos da acácia silvestre esparziam flores sobre os úmidos cabelos.”
E, falando em romantismo, chegamos ao escritor e militar,
Alfredo d’ Escragnolle Taunay, o futuro Visconde de Taunay (1843-
1899). Taunay escreveu o diário de guerra Retirada da Laguna. Havia
participado da Guerra do Paraguai e do épico episódio da retirada.
Conduzidos pelo Coronel Camisão, a coluna brasileira chegou até
Laguna, no Paraguai. Sem víveres para o sustento da tropa e afetadapela epidemia da cólera, a coluna foi forçada a retirar, alcançando
finalmente as margens do Rio Aquidauana, no sul de Mato Grosso,
com apenas alguns homens alquebrados pela doença e pela fome.
Taunay apaixonou-se então por uma índia da etnia chané,
chamada Antônia. Seus cabelos negros guardavam os segredos das
noites entre os morros. Ela se perfumava com folhas de laranja e
funcho macerado, e sabia pronunciar o nome francês dele enquanto
o acariciava: “Taunay, Toné.”
Sobre esse interlúdio amoroso, escreveu o próprio Taunay em
seu livro Memórias, publicado um século depois de seu nascimento:
“A bela Antônia apegou-se logo a mim e ainda mais eu a ela me
apeguei. Em tudo lhe achava graça, especialmente no modo ingênuo
de dizer as coisas e na elegância inata dos gestos e movimentos.
Embelezei-me de todo por esta amável rapariga e sem resistência me
entreguei exclusivamente ao sentimento forte, demasiado forte, que
em mim nasceu. Passei, pois, ao seu lado, dias descuidosos e bem
felizes, desejando de coração que muito tempo decorresse antes
que me visse constrangido a voltar às agitações do mundo, de que
me achava tão separado e alheio. Pensando por vezes e sempre com
sinceras saudades daquela época, quer parecer-me que essa ingênua
índia foi das mulheres a quem mais amei.”
Guimarães Rosa (1908-1967) veio certa vez para o sul de Mato
Grosso para “rodar as etapas da Retirada da Laguna”, livro que
ele amava. É o que nos revela no capítulo “Sanga Puitã”, do livro
Ave, Palavra. Já em Campo Grande, escreveu ele, aportam risos do
Paraguai em pares de olhos escuros, mal avistados e no ritmo das
polcas e guarânias. “Paraguaytalinda! – toa uma harpa, entre guitarras.”
Nesta manhã de sol de domingo, dirijo-me aos quiosques da
Feira Indígena do Mercadão Municipal de Campo Grande, espaço
onde indígenas de aldeias de Aquidauana, Anastácio e Miranda vendem ervas e frutas. Em cestos e bacias espalham-se limões, mangas,
pequis, guaviras, palmitos, feijões verdes. Há também potes de mel e
orquídeas em xaxins. Os aromas se misturam e nos transportam para
a vida e a cultura dos indígenas. No centro da praça, ergue-se uma
enorme escultura da Índia Terena, do artista plástico Anor Mendes,
em resina cor de terra. Às mulheres índias, cabe o trabalho do cultivo,
do artesanato de minúsculas flores brancas pintadas no barro, a força
em perpetuar histórias e tradições.
De repente, uma delas se levanta. É uma índia jovem, com
cabelos lisos e longos como crinas. Remexe os quadris, enquanto
carrega na cabeça uma lata de cajus de castanhas duras como bicos
de pássaros. Nas mãos, carrega um vaso de avencas. Desprende-se
dela o perfume de frutas maduras, de seixos rolados, de plumagens
vermelhas. A primavera fez ninho dentro dela.