Maio, 2024 - Edição 300
Entrevista - Ricardo Cavaliere
Gramática e léxico
Arnaldo Niskier: Hoje vamos falar sobre a língua portuguesa e trouxemos o professor e acadêmico Ricardo Cavaliere. Ele foi eleito recentemente para a Academia Brasileira de Letras e hoje faz parte, como profissional brilhante que é, da sua Comissão de Lexicografia e Lexicologia. O q isso representa?Ricardo Cavaliere: A lexicologia e a lexicografia são disciplinas irmanadas que cuidam do léxico do idioma. A lexicologia estuda o léxico, suas características, sua composição, e a lexicografia tem a tarefa de elaborar os léxicos, os dicionários, os vocabulários ortográficos. Em suma, tem uma tarefa mais prática.
Arnaldo Niskier: Então, com essa clareza, por que estão pensando em mudar o nome dessa comissão?
Ricardo Cavaliere: Na realidade, a mudança do nome, que passaria a ser Comissão de Gramática e Léxico, visa a ampliar a atuação da Academia na área da língua portuguesa, porque, com a denominação Gramática e Léxico, a Academia poderá continuar a produzir pesquisa e textos na área do léxico, como vem fazendo até hoje, por exemplo, com o dicionário da Língua Portuguesa, com o Vocabulário Ortográfico e também poderá promover projetos futuros na área da gramaticografia do português.
Arnaldo Niskier: Uma curiosidade: uma palavra, quando entra no dicionário, não sai nunca ou ela pode ser, lá pelas tantas, jogada fora?
Ricardo Cavaliere: Pode. Na realidade, o léxico é uma espécie de depositório de palavras em que há uma constante entrada e saída de termos. Saída também. O português já teve palavras como, por exemplo, o advérbio asinha, que significa depressa, que hoje já não consta dos léxicos contemporâneos. É uma palavra que caiu em desuso. O falante, por motivos vários, deixou de usar a palavra no cotidiano do uso da língua e, com isso, os léxicos se atualizam, os dicionários se atualizam e deixam de registrar o termo.
Arnaldo Niskier: : Quem determina o que entra e o que sai de um dicionário?
Ricardo Cavaliere: Em termos de língua, não só portuguesa, em qualquer língua, quem determina tudo é o falante, lato sensu. É o uso linguístico que determina, por exemplo, os tipos de construção frasal que são aceitos como válidos, como também o conjunto de palavras de que se deve servir para construção de frases em português. Então, se o falante, por algum motivo, deixou de usar o termo, esse termo acaba por ser um arcaísmo. Ele passa a não constar mais dos léxicos contemporâneos.
Arnaldo Niskier: E quem determina o que entra e o que sai é a própria Academia Brasileira de Letras.
Ricardo Cavaliere: Na realidade, o lexicógrafo faz uma pesquisa constante sobre a presença da palavra ou do termo no corpo da sociedade, no corpo dos falantes e, em face dessa pesquisa, opta por manter ou retirar a palavra dos dicionários e dos vocabulários. Como também a pesquisa lexicográfica e lexicológica é que determina se uma nova palavra deve ingressar no corpo de um dicionário.
Arnaldo Niskier: Você, certamente, como especialista consagrado que é, acompanha a discussão em torno da inteligência artificial. É uma ferramenta extraordinária. Já tem muita gente contrária, como sempre acontece nas discussões sobre as coisas dessa natureza. Como é que você vê, por exemplo, a introdução de termos decorrentes do uso dessa ferramenta?
Ricardo Cavaliere: Vejo com, digamos, certa apreensão, porque toda novidade sugere uso imediato, devido às possibilidades imensas que traz. No caso da lexicografia, sobretudo, seria muito perigoso deixarmos em uma ferramenta de inteligência artificial decidir, por exemplo, se uma palavra já consta ou não do uso corrente da língua. Então, acredito que a inteligência natural, que é a inteligência humana, ainda deva permanecer nesse tipo de tarefa.
Arnaldo Niskier: Você acha que a inteligência artificial pode ser útil nesses trabalhos da Academia?
Ricardo Cavaliere: Acredito que possa ser útil na execução da formação de verbetes num dicionário e na escolha de corpus de investigação. Cada verbete, além de ter o lexema correspondente, que é a palavra que consta na cabeça do verbete, tem também uma confirmação do uso desse lexema em suas várias acepções, em seus vários sentidos. Para isso, o dicionarista tem que se valer de um corpus de comprovação de uso. Acredito que a inteligência artificial venha a facilitar a consulta a esse corpus para comprovação do uso dos lexemas.
Arnaldo Niskier: Como especialista que é, você acompanha o que se passa no resto do mundo, sobretudo do mundo desenvolvido, em relação à aplicação em dicionários de vocabulários. Fui à Espanha há algum tempo, fiquei impressionado. Visitei a Academia Espanhola de Letras. O presidente era Dom Fernando Ferreter e ele me disse que trabalham na lexicografia e na lexicologia, na Espanha, 80 especialistas. Sei que não temos nem dez. Como é que pode?
Ricardo Cavaliere: Olha, é um trabalho beneditino, porque a língua portuguesa, pelo menos na projeção do nosso léxico, do nosso dicionário, chegaria a mais de 200.000 verbetes. Há dicionários já publicados até com mais de 250.000 verbetes, quase 300.000 verbetes. E elaborar esses verbetes, quer dizer, o conjunto desse trabalho requer mão de obra especializada e, sobretudo, um trabalho coeso, em que todos trabalham segundo os mesmos princípios lexicográficos. Não é fácil montar uma equipe como essa.
Arnaldo Niskier: Quero muito saber de você, porque esse tema é muito atraente, não é? Explique, por favor, em poucas palavras, como é que um termo entra no dicionário, por exemplo. Há uma sessão de novas palavras? Como é que elas são escolhidas? Isso é aleatório? Existe alguma especificidade? Como é que isso funciona?
Ricardo Cavaliere: Primeiramente atesta-se a presença da palavra no uso cotidiano ou no vocabulário que o falante, em geral, utiliza no cotidiano da vida. Depois, para que essa palavra seja efetivamente dicionarizada, é preciso que sigamos alguns critérios. Primeiro, a frequência de uso. Segundo, o uso em texto escrito é fundamental, porque convalida a presença da palavra como algo que já passou, digamos, da fase de um mero modismo e, sobretudo, o uso em textos de gêneros distintos, textos literários, não literários, textos jornalísticos, textos científicos. Quer dizer, se a palavra tem uma frequência significativa de uso em mais de um gênero textual, em texto escrito, a comissão faz uma avaliação sobre a sua possibilidade de constar no dicionário
Arnaldo Niskier: Para ser bem claro no exemplo, recentemente, por sugestão sua, a Academia colocou no seu dicionário a palavra dorama. Foi uma celeuma. Vi, na Folha de São Paulo, alguns leitores criticando a Academia por causa do uso de uma palavra que faz parte da vida japonesa ou coreana, ou das duas indistintamente. Por que a palavra dorama entrou e foi alvo dessa polêmica? O que você explica a respeito?
Ricardo Cavaliere: Dorama ingressou, porque houve uma constatação de seu uso em texto escrito, sobretudo, em mais de um gênero textual, gênero jornalístico, até mesmo em texto literário constatou-se o uso e, portanto, convalidou-se o termo como uma palavra, um substantivo que já está presente no léxico do português brasileiro cotidiano. Agora provocou uma certa celeuma, porque a palavra tem, evidentemente, origem japonesa, porque é uma pronúncia japonesa da palavra drama e algumas pessoas julgavam que as produções para o cinema ou para televisão, que não tinham origem japonesa e sim outra origem, a asiática, como, por exemplo, coreana, não deveriam ser denominadas com essa palavra, a palavra dorama. Ocorre que, no Brasil, o termo engloba as produções cinematográficas e, na área da televisão também, as séries televisivas, tanto de origem japonesa quanto de origem coreana ou até de outras origens asiáticas. O que importa é o uso da palavra no Brasil, como o falante brasileiro usa a palavra no cotidiano fora da língua portuguesa.
Arnaldo Niskier: Quando entra, não quer dizer que vai ficar a vida toda, porque cai em desuso também.
Ricardo Cavaliere: Se cair em desuso, vai ocorrer com dorama o que já ocorreu com outras palavras que eram muito usadas no passado. Quem lê textos jornalísticos e textos literários dos anos 1950, anos 1940, até essa fase da língua portuguesa no Brasil, encontra ali o termo busílis em expressões como “Aqui está o busílis, aí é que é o busílis”.
Arnaldo Niskier: Busílis da questão.
Ricardo Cavaliere: O busílis da questão. E hoje já não se encontra um falante do português no Brasil que use frequentemente essa palavra, é um termo que está com o seu caminho quase que vedado.
Arnaldo Niskier: Queremos felicitá-lo pelo trabalho da Comissão de Lexicografia e Lexicologia da Academia e desejar muito sucesso.