Maio, 2024 - Edição 300

Cultura no digital

A migração para o digital é fato consumado. Cada vez mais demandas da vida cotidiana se alojam na grande nuvem para onde migraram os bancos de dados reunidos por pessoas físicas e jurídicas. Se o manuseio das novas tecnologias pode agastar o pouco resistente a falhas tecnológicas e oscilações de sinal de internet, não há dúvida quanto à tendência de democratização do conhecimento advinda dessa nova concepção de mundo. Para os pesquisadores em geral, uma generosa contribuição.

Lembra-me ainda os tempos, não tão recuados, em que a consulta a documentos recolhidos, a obras raras, a processos judiciais findos, a registros públicos, civis e eclesiásticos, dependiam de deslocamento até o arquivo e de permissão para acesso ao suporte da informação, nem sempre em bom estado de conservação. Investigações e pesquisas se faziam mais facilmente então de temas “locais”, ou senão, com um pouco de sorte, mediante bolsas que custeassem viagem e estadia. Consultar livros fora de catálogo, ou títulos de circulação restrita, demandava paciência e tenacidade. A possibilidade de desistir era ameaça palpável e que se avistava ali mesmo, na esquina.

Atualmente cada vez mais documentos estão hospedados on-line. Bibliotecas, pinacotecas, discotecas inteiras disponibilizadas, bastando ao interessado munir-se do endereço digital e seguir as instruções de acesso. Beneficiei-me pessoalmente desse estado de coisas ao me utilizar para escritada tese de Doutorado de fontes legislativas portuguesas desde o século XV, consultadas nos repositórios legislativos (geralmente oitocentistas) disponíveis em sites de Universidades e organizações. E por aí vai: procure-se, por exemplo, um artigo qualquer publicado num número recuado da Revista Brasileira: vai- -se ao site da Academia Brasileira de Letras e o achará. Acesse-se a monumental coleção da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, publicada desde 1839 – um repositório de textos e documentos relevantes e de outra forma, repita-se, pouco acessíveis, até mesmo pelo estado físico dos volumes.

Felizmente outras iniciativas semelhantes vão surgindo um pouco por todo lado: instituições culturais disponibilizam consulta ao banco de dados que lista o acervo, ou hospedam diretamente em seus sites a produção cultural de que sejam detentoras. Confira-se, por exemplo, as inúmeras publicações acessíveis na página da Academia Espírito-santense de Letras.

Ainda que na busca pela informação nosso interesse se volte para obra não disponível on-line, a facilidade na digitalização e no compartilhamento inaugurou uma nova era para os pesquisadores. Exemplifico com um sucedido comigo mesmo, há poucos dias: há anos procuro o livro Dos Oito aos Oitenta e Tantos, de Alfredo Freyre (pai de Gilberto Freyre), publicado em 1970 pela Universidade Federal de Pernambuco. Depois de inúmeras buscas por aí, on e out-line, lembrei-me de um amigo, confrade do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, que recebeu minha demanda, diligenciou e em poucos dias disponibilizou-me cópia do trecho que me interessava.

Claro, nessa de prospecção de raridades não podem faltar nem sorte nem amigos bem-informados. Mas a perspectiva de cultura no digital é um feliz contraponto à ameaça da propagação de radicalismos e desinformação que vem invadindo as redes.

Por Getúlio Marcos Pereira Neves, sócio do PEN Clube do Brasil.