Dezembro, 2023 - Edição 298
As diversas faces do tempo em Tinteiros da Casa e do Coração Desertos, de Diego Mendes Sousa
Logo no primeiro
poema deste livro original do escritor Diego
Mendes Sousa, temos o
tema que vai percorrer
todo o livro – o tempo –
não em seu rosto único,
mas em suas faces múltiplas, desdobrando um
tema de uma nota solitária em toda sua amplidão de significados e
matizes. Em Tinteiros
do Escuro Mergulho, a
infância é esta face da
memória do tempo, em
que o eu não é estático, mas passa pela
transformação do tempo como “passagem”, “movimento”: “passa o tempo
vivaz...” A casa hoje e a casa que ficou
se interiorizam neste ser que admite
o tempo como acorde dos sonhos:
“Minha infância/é este rio cavernoso/
que parte de mim para mim...”
E o tempo só se densifica na
escrita e os “tinteiros” só fazem ressaltar esta metáfora da tinta como uma
rasura no esquecimento, ferindo-o,
para que a dor do sangue/tinta cubra
as faces líricas deste eu peregrino que
caminha pela casa e pelo coração desertos. O vazio foi o que ficou.
Resta ao presente completar esta plenitude que se traduz como
barulho, linguagem. A “tinta fresca” é presentificada, a memória é
revivida e a essência de sua escrita é recordar. Como disse o grande
teórico da literatura Emil Staiger, a beleza do lírico é a “recordação”
e nada melhor do que a poesia para trazer à tona todos os embates
da memória, em seu ritmo, em sua pulsação magistral, num recorte que se quer inaugural, pois é volta, origem, infância, família:
“Renascer nos rumores que não mais existem.”
Se, no tempo da origem, temos este recordar, temos um
corte preciso quando se fala das faces do amor, pois em Tinteiros
do Alento do Amor: “Não há sentimento/no anímico subterrâneo/
que restaure/o sonho das dores /vestidas/sob o Amor”. Aqui o
tempo é algo ligado à ruptura com o real, o real do hoje que não
consegue resgatar do esquecimento as memórias de Eros: “À
sombra da sonata do céu de hoje/não desarma o choro já acontecido.” Neste sentido, o tempo adquire um outro segredo de sua
multiplicidade, a imutabilidade do passado, como se ele quisesse
permanecer em sua eternidade incógnita, ignota e indecifrável. A
permanência do tempo é descosturar os véus do hoje que mancham, distorcem a visão completa da experiência vivida: “A casa
por que passamos/preserva os hábitos/do errar permanente/à
luz dos clarões/consumidos?” O tempo neste livro é visto em toda
sua extensão, em sua grandiosidade, seja pelo viés do labiríntico
ultrapassar das margens, das lacunas através do presente, seja para
não medi-lo, tornando-o incomensurável e eterno, lembrando-nos
aqui do “Essencialismo”, de Murilo Mendes, ao querer ultrapassar
o tempo efêmero, que causa dor, como se a eternidade fosse um
desarmamento da dor a partir do mistério.
Outra face do tempo é o erotismo na imagem capturada
na sua “Musa-mulher”. Misturando o sagrado e o profano, temos
a imagem de Vênus num de seus poemas magistrais, incluído no
livro. Diego Mendes Sousa quer eternizar o tempo com a amada
em estado divinizado, mas que não deixa de ter a imanência do
jogo erótico. Aqui temos uma estratégia inovadora na poesia deste
poeta promissor, a mistura dos tempos ditos anteriormente no
repouso de sua Amada atual, presentificando tempos eternos,
mas ao mesmo tempo inacabados com sua Musa, pois o erotismo
é esvaziar e preencher o vazio, o passar do tempo e a eternidade,
como já se traduzia no verso do grandioso Vinicius de Moraes, “que
seja infinito enquanto dure”. Temos nesta “dupla chama do erotismo”, nos reportando a Octávio Paz, um paradoxo entre esta estaticidade que perdura com a corrosão da dor do tempo. Podemos ver
no poema-título do livro esta dinâmica vazio-plena do sentido do
tempo: “A morada é deserta/dos vazios repletos/de ardor.
Portanto, temos neste livro de Diego Mendes Sousa estas
faces do tempo em “peleja eterna”, com seus “clarões” e “vulcões”,
traduzindo a imanência e a transcendência num só sopro de vida,
costurando as respostas e as questões nos espelhos invertidos da
memória. Neste poeta impressionante por seus poemas ricos e
inventivos, temos a solidão da memória, pois esta traz a solidão
profunda, mas ao mesmo tempo se avizinha com os fantasmas,
tendo sua companhia nos vazios dos corpos. Nas suas “Visões da
Grande Noite”, para além das transcendências e eternidades da
memória, encontramos a simbologia noturna do imanente erotismo: “A noite é Altair/e seus perfumes/ e sua seda de pele...” Assim,
em Diego Mendes Sousa, o tempo é colocado como uma pintura
numa moldura em que as simultaneidades dos pontos de vista se
cruzam produzindo um perfume tão animador e vivaz como de
sua Amada Musa, que pode inebriar e extasiar o seu leitor que é,
ao mesmo tempo, o poeta por ora aqui estudado, que é leitor e
escritor de sua Musa inspiradora, o próprio tempo que se encarna
e desencarna nas tintas claras e obscuras da memória.
Tinteiros da Afrodisia Atrevida
Poema de Diego Mendes Sousa
À imitação da Vênus,
vi o teu corpo
de suave sombra
desenhada nas maçãs
sob o dorso varão
do semideus faminto.
À semelhança do meu destino –
caminheiro,
observei a pluma da tua vulva
a escapar no vento
dos beirais sonoros
em peleja
para o gozo ávido.
À beira do amor
e do tempo
e da beleza
de uma eternidade,
escrevo a mão
– divinizado –
na corrida desses cavalos
frente a frente.
À força do falo,
que rasga sempre
as tuas águas.