Novembro, 2023 - Edição 297
Noites brancas e pretas
Um meteoro cruzou o céu de minha cidade. Foi um estouro
cintilante. Um fragmento interplanetário. Uma aparição fugaz,
cheia de filamentos, como uma lâmpada acesa e quente na atmosfera daquela noite. Noite de estrelas cadentes, de desejos que pulsaram como bólidos em meu peito.
Há noites brancas e pretas. As noites brancas são cheias de
angústia, de vazio, de aridez e secura. Estranhos terrores povoam
nossa mente como fantasmas. Somos beduínos envoltos em mantos de lã branca, perdidos entre as dunas, os anéis de Saturno brilhando sobre nossas cabeças. O sono não vem. A vigília prossegue,
enquanto o leite da lua agrava nossa loucura. Já as noites pretas, de
trevas fermentadas, de espaço constelado, de véus sombrios, são o
tempo propício para germinações, provas, segredos ocultos que se
manifestarão de forma plena, quando vier a aurora com seus tons
de pérola.
Noites Brancas é o título de um conto do escritor russo
Dostoiévski (1821-1881). Uma história romântica, sensível, delicada. Um rapaz solitário conhece uma bela moça, de chapeuzinho
amarelo e mantilha negra, chorando encostada numa ponte de
São Petersburgo, numa noite branca. Era verão, quando escurece
muito tarde. O sol se punha aos poucos, abaixo da linha do horizonte, prenunciando uma madrugada estatelada como claras de
ovo em neve. Realmente, o ambiente todo do conto parece esbranquiçado, nevoento. Tornam-se amigos. Durante quatro noites,
naquele mesmo lugar, eles se encontram e conversam sobre suas
vidas, amores, livros e esperanças. O nome dela era Nastenka. Ele
permanece um anônimo sonhador. O rapaz se apaixona, mas o
coração de Nastenka espera por outro, por uma promessa, pelo
ideal ausente. O eterno confronto entre nossos sonhos e a busca
real da felicidade, que, às vezes, está ao nosso lado e não vemos.
Um momento de júbilo, de gratidão, seria suficiente para uma vida
inteira? É o que ele se indaga, enxugando as lágrimas do rosto dela.
Ah, Dostoiévski! Como amo esse misto de sofrimento e
culpa; essa sua capacidade de se exprimir sobre o difícil livre-arbítrio, que limita as escolhas e as consequências nos destinos;
esse seu dom de mostrar como somos passíveis de destilar amor
infinito e também mal infinito. Bom ler seus romances em noites
brancas, esclarecedoras, sem quase acreditar que um homem pode
saber tanto sobre o mistério da existência e da espiritualidade.
As noites pretas, conheci outrora, nas fazendas sem luz elétrica. Noites ornamentadas de astros. Estelantes. Lembro-me de
uma ocasião, em especial. Estávamos sentados na varanda quando
ouvimos um carro chegando, rente à porteira. Saímos andando pelo
campo, de mãos dadas, indo ao encontro do visitante. O negror era
tamanho que, não fosse a luz da lanterna, não veríamos nossos pés,
nossos passos na grama. Desligávamos a lanterna por um instante
e vinha a sensação de que tropeçaríamos, sem ver onde estávamos
pisando. No foco da luz, passeavam insetos, formigas carregando
imensas folhas. Quando apagávamos, o coração se confrangia, pois
poderiam surgir cobras e escorpiões. Caminhávamos com passos
firmes, um passo de cada vez, sob a luminosa direção, orientados
pelo farol. Na porteira, o visitante nos aguardava de pé, os braços
abertos de pai e amigo.
Foi numa noite assim, preta, que o meteoro cruzou o céu de
minha cidade, como um efêmero foguete.