Novembro, 2023 - Edição 297
Introdução
No meu entender, há três maneiras de escrever sobre literatura.
A primeira é a dos escritores que escrevem sobre si mesmos e suas
obras – são autobiografias, diários e outros textos autorreferenciais
de ficcionistas, poetas ou dramaturgos. A segunda é o trabalho que
especialistas, em geral com lastro acadêmico, lhes dedicam (àqueles
escritores e obras), lançando sobre eles, a partir das teorias que dominam, e de uma leitura sistematizada do cânon, um bem treinado olhar
externo – é a crítica profissional, exercida nas universidades ou fora
delas. E a terceira é a praticada por escritores diletantes que, ao escrever sobre outros escritores e suas obras, lançando sobre eles também
um olhar externo, estimam ser possível fazê-lo tendo por base não a
bagagem teórica do crítico profissional, mas leitura voraz, audácia e
atrevimento. Meu caso.
Em minha defesa, concedam-me algumas linhas. Passei a maior
parte de minha vida (48 anos) como diplomata. Fácil de entender,
dediquei-me nesse período sobretudo à leitura de livros de História,
Política, Economia, Relações Internacionais, Diplomacia, bem como
ao estudo das questões tópicas relacionadas às missões que se sucederam ao longo de minha carreira. Nos intervalos, aliviava as tensões
nas páginas de histórias de espionagem, intrigas palacianas, disputas
pelo poder, rivalidade entre nações e jogos de interesse dos grupos de
pressão (no que parecia ser o crepúsculo da Guerra Fria, incorporei
histórias de detetive à pilha de meus livros de cabeceira. O que me
sobrava ainda de tempo estendia aos textos literários que me sugeriam
os amigos e aos autores mais destacados da produção cultural dos
países onde servia (Estados Unidos, Uruguai, França, Espanha, Peru,
Japão e Bélgica).
Em meio a essa trajetória de décadas de leituras dispersas, para
não dizer desorganizadas, tenho até hoje dificuldade para explicar
como consegui escrever nove livros que, com uma exceção, pouco ou
nada têm a ver com diplomacia – sete romances e dois ensaios.1
Menos
ainda sei dizer por que o segundo ensaio descambou para uma tentativa de crítica literária, posicionando-me diante da literatura como
objeto de estudo. Só posso intuir que minha vivência como romancista
despertara em mim o interesse, senão o impulso, de desvendar no que
lia os mecanismos interiores da narrativa. Para compensar minhas
deficiências no campo da teoria literária, dei atenção redobrada à leitura de tudo que me pudesse ajudar a penetrar as entranhas do texto
e, no caso concreto, a construir linhas de reflexão sobre a obra de Luiz
Alfredo Garcia-Roza, projeto que teimava em levar adiante.
Para minha sorte, lembrei-me do método de trabalho de José
Guilherme Merquior, que, diplomata e grande homem de ideias, foi
também, como se sabe, um de nossos mais finos críticos literários.
Merquior lia, sublinhava e fichava os textos que estudava, exercício
que, potencializado por uma memória fora do comum, lhe permitia
tudo ler duas vezes – no ato da leitura propriamente dita e no de fichar.
A partir daí, aplicava seu talento, não menor que a memória, à decifração dos segredos da obra que se propunha investigar. Sem os atributos
de Merquior – memória e talento incomuns –, sublinhei e fichei coleção razoável de livros, na esperança de aterrissar com mais segurança
no romance policial de Garcia-Roza.
O expediente das fichas foi decisivo. O vasto material extraído
das fontes pesquisadas haveria de cobrar-me, porém, disciplina e
organização. Tivesse contado com o devido treinamento acadêmico,
decerto seguiria metodologia mais sofisticada para estruturar a tese
que afinal preparei sobre Garcia-Roza. Mas terminei conformando-
-me com buscar na imensa floresta à minha frente o que de mais
importante sobressaía de algumas árvores que me empenhei em
selecionar da melhor forma que pude. Centrei-me em grupos temáticos, coletivo que incluiria e, ao mesmo tempo, distinguiria questões
como as origens da história de detetives, os métodos de trabalho das
investigações, a narrativa no gênero policial, em geral, e na obra de
Garcia-Roza, em particular. Afunilei, a seguir, a abordagem em favor
de agrupamentos temáticos ainda mais definidos, como a relação do
autor com a solidão, a flânerie, as mulheres, a cultura e a psicanálise.
Concluí com o tratamento instigante que o autor reservava ao suspense e, em outro plano, à complexidade dos comportamentos humanos.
Amigos fiéis reconheceram valor em minha primeira aventura na crítica literária, a tal ponto que me deixei levar pela sensação
ousada de que poderia persistir na prática. Depois de dois anos e
meio de muita leitura e pesquisa, a que me tinha levado Garcia-Roza,
julguei haver desenvolvido alguma resistência para fazer crítica sem
ser crítico profissional; para buscar desvelar os dispositivos retóricos
e o tratamento dos temas em textos de ficção mesmo sem o domínio
acadêmico de conceitos da teoria literária. Não se trata de fazer pouco
do acervo da crítica profissional – ao contrário, sou-lhe grande devedor; mas a perspectiva de escrever sobre literatura me seduzira. Que
tal um oitavo romance?, cogitei. A ideia soava simpática, mas não me
cativou. E por que não um outro ensaio, desta vez mais amplo, sobre o
fenômeno literário em si?
Ao repor os pés no chão, assustei-me com o novo desafio. Não
havia hipótese de alguém com minha formação inovar nesse terreno,
e o risco de me perder seria nada desprezível. Tentar lançar luz, da
perspectiva da minha experiência, sobre grandes escritores, tendo
como foco a produção artística de cada um, os métodos de trabalho,
a construção das personagens, o desenho das tramas, os segredos do
ofício... A tarefa teria magnitude sem precedentes para mim, mas não
me dei por vencido.
Voltei a ler e reler a coleção de fichas que só crescera desde
o ensaio sobre Garcia-Roza. Instigava-me o anseio, que suponho
comum a muitos outros leitores-amadores, de conhecer melhor
noções da teoria e da crítica literárias e, bem assim, habilitar-me a
desfrutar mais plenamente do sumo prazer que propiciam as sutilezas e as ambiguidades, os caminhos mais ou menos claros, as portas
entreabertas da alta produção literária, em prosa e verso.
Intitulei o livro Conversa sobre literatura, cujo protagonista
devesse ser o leitor. Anima-me a convicção de A. M. Foster, o decano
da crítica norte-americana, de que a fruição de obras literárias, tanto
quanto de outros gêneros artísticos, não é exclusividade de iniciados;
naturalmente, é acessível, também, a leitores sem maior intimidade
com esta ou aquela teoria. A ideia a que decidi dar corpo, assim, é a
de convocar escritores, críticos, acadêmicos, jornalistas e especialistas das mais diversas épocas, origens, formações e tendências para
uma “conversa” com meus eventuais leitores sobre as convergências e
divergências de conceitos da teoria literária; a centralidade e a ambivalência das técnicas criativas; o equilíbrio entre a voz autoral e a da
narrativa; a onipresença do autor e a autonomia dos personagens;
o tratamento da “realidade real” e da “realidade fictícia”; o papel da
cumplicidade leitor-autor-narrador – e toda uma gama de aspectos
que, frequentemente desconhecidos do grande público, podem estar
a seu alcance e, uma vez assimilados, podem revelar-se úteis em sua
experiência como leitores de literatura.
Confiei no que pregavam o romancista Joseph Conrad: “Minha
tarefa é fazer você [o leitor] ver.”2
, ou o crítico Wayne Booth: “Minha
técnica de escrever ficção não-didática faz parte da arte de comunicação com os leitores”.3
O projeto tem uma característica adicional:
o material em torno do qual terão lugar as “conversas” são textos da
lavra de interlocutores do mais alto nível, nada menos que alguns dos
gigantes da literatura ocidental. O expediente ainda me exime de deitar falação própria sobre questões com as quais melhor lidarei na condição humilde de leitor também, ao lado de todos os que me brindem
com sua companhia nesta empreitada. Em uma palavra, o foco deste
livro é Sua Excelência o Leitor, com quem pretendo “conversar” página
a página, sem jamais esquecer um dado fundamental: a literatura não
nasceu para dar respostas, mas, antes, fazer perguntas.4
Eu pergunto,
e minhas fontes de luxo nessas “conversas” farão a gentileza de responder-nos. Um esclarecimento final. Até as iniciativas mais ambiciosas precisam conhecer limites. No meu caso, a exclusão de poesia
e dramaturgia refletiu a consciência de que não conviria improvisar
tratamento crítico desses gêneros neste livro. Fixo-me na narrativa de
ficção, gênero em que já cometi a deliciosa petulância de exercitar-me
e em que me sinto mais à vontade. Espero que me relevem.
1. Obras por ordem cronológica de publicação: Desde os tempos da esquina.
Record, 1989; A casa de dona Iolanda. Maltese, 1992; Exílio nacional. Topbooks,
2001, Prêmio Nacional de Literatura Luiza Claudio de Souza de 2002; Clube dos
injustiçados. Record, 2013; Por dentro do Itamaraty. Impressões de um diplomata. Ensaio, FUNAG, 2013; Ao lado da lei. Lisboa, Chiado, 2014; O corpo. Verve,
2016; A história de detetives e a ficção de Luiz Alfredo Garcia-Roza. Ensaio, IbisLibris, 2020; e A plataforma. Ibis-Libris, 2020.
2. Apud Booth, Wayne, 1983, p. xx.
3. Booth, 1983, p. xiii.
4. Leyla Perrone-Moysés. 2016, p. 305.