Novembro, 2023 - Edição 297
Desjardim, Muito Além do Farol do Fim do Mundo, o terceiro romance de uma trilogia estupenda de Silas Corrêa Leite
Desjardim, Muito Além do Farol do Fim do Mundo é um dos primeiros livros escritos por Silas Corrêa Leite, romance que compõe uma
trilogia depois de O Marceneiro – A Última Tentativa de Cristo e Ele Está
no Meio de Nós. Um crime grave cometido, e o meliante fugindo como
se querendo voltar ao começo da louca jornada da vida que fez e levou, e
fazer tudo diferente. Quando não há uma saída, nada faz a volta ser pacífica. No meio do caminho do desespero, há um palhaço negro vestindo
um macacão amarelo, com um botijão de gás nos ombros largos, como
um acusador e modificador de roteiro, feito um juiz e salvador no limbo
das circunstâncias. Um livro sobre medo, fuga, arrependimento, culpa e
castigo, crime e acusação. O que vem para salvar, também pode cobrar seu
preço. Voltar para casa, num caminho feito errado, pode ser só um pedido
de mãe, e, como diz Henfil, quem tem mãe não tem medo. Essa é aventura
de Desjardim.
Silas Corrêa Leite, ao seu estilo diferenciado e peculiar, coloca a
alma no que cria em prosa e verso. Nas ficções que elabora, coloca os seus
mirabolantes personagens em conflito, radicaliza momentos cruciais,
nutre os seres de sonhos loucos, e, ainda, com eles, persegue ideais de
recomposição em portentosas trilhas de vida. Zuenir Ventura diz: “a literatura é capaz de criar um personagem que tenha muito mais coerência
do que um personagem da vida real, porque ele passa a ser convincente
dentro da própria lógica interna da narrativa.” Essa é a ideia deste romance que completa uma trilogia do autor. O autor busca, na cumplicidade do
leitor, um jeito todo próprio de tomá-lo pela mão e conduzi-lo pelo prisma
diáfano da história, com sangue, suor e lágrimas no mesmo diapasão. Ivan
Ângelo diz que escreve para mexer com a cabeça das pessoas. Deve ser
esse também o propósito do autor de Desjardim, Muito Além do Farol do
Fim do Mundo.
James Joyce disse que, às vezes, as pessoas não são pessoas, são
rios, matas, anseios humanos, impulsos colhidos num painel arquétipo.
Silas Corrêa Leite dá curso a essa ideia, retraduz jornadas a relatar uma
realidade substituta, talvez um mundo paralelo, Desjardim, o Farol do Fim
do Mundo, ou qualquer outro nome que tenha o próprio desmundo. Uma
história que daria um belo filme. João Silvério Trevisan (Balaio de Textos/
Oficina Literária do SESC-SP) disse que tudo o que o autor escreve é cênico, fílmico.
Neste romance, o destino de um jovem alienado, a apelação da mãe
pela sua salvação. “Quem tem mãe não tem medo”, disse Henfil. Então não
existe destino? Escolhemos ou somos escolhidos? Que mistério é o triângulo do tempo? Quem nos salvará de nós?
Virginia Wolf diz que a vida atual é feita de trevas impenetráveis
que não permitem a visão circunspecta do romance tradicional. Lemos, na
obra, as luzes de um estado entre o numinoso e o telúrico, num romance
em trânsito em que o personagem principal desconstrói uma vida errada,
ergue paulatinamente um novo estar em si (e um caminho muito além
de si a partir dessa nova empreita) com revelações, loucuras de percurso,
tudo fazendo crer que, sim, o tempo pode parar, o céu pode esperar, afinal,
somos o céu e o inferno em nós mesmos.
Desjardim, Muito Além do Farol do Fim do Mundo é quase uma
parábola sobre a desvairada condição humana. Então não estamos perdidos, quando temos uma esperança? Sempre há uma chance? Que preço é
o fardo inexorável do perdão? Todos serão salvos ou há mesmo um farol,
muito além do fim do mundo, feito um desjardim? Um romance sobre desvios de conduta humana, desvão de almas; sobre purgações, fermentos,
achadouros, chorumes; o punho de Deus, o algoz de Deus, e, claro, certamente também o enviado de Deus, quem quer que Ele seja. Segundo LuciMcCormick Calkins, “escrever faz com que descubramos e celebremos os
padrões que organizam nossa existência”.
Um jovem problemático comete uma infração hedionda e deixa a
sua marca fatal de destemperado no local de mais um crime, o pior deles.
Começa aí a contagem regressiva de sua estranha e inevitável fuga. Após
isso, o desespero atiçado move a própria alienação. Que inusitada saída é a
louca corrida dentro do que pode ser o labirinto de um espaço inexistente
no mundo real, feito uma realidade paralela? Parece que é nesse não lugar,
como uma espécie alienada de não ser, que tudo é posto a prova feito uma
aventura de percurso. Quem nos salvará de nós, se encontrando conosco
mesmo, quando estamos frente a frente com a dura realidade, reestimando erros, falhas; falcatruas de uma senda pregressa e o próprio horror de
uma vida inteira errada, e quando, então, tudo é implacavelmente questionado, numa interpelação para lá de inexplicável? Desjardim é o cenário.
Quando estamos em perigo terminal, adrenalina a mil, é que sentimos o apuro de uma verdade conflitada, face ao questionamento da
verdadeira coragem. O romance começa com uma tragédia em Sampa. E
uma volta para a terra-mãe, Itararé, pode ser uma espécie de refinamento
íntimo a partir de nódoas, deszelos, perdas, vertentes alegóricas, psicológicas, medos e alterações do estado de espírito, dentro da fantástica estadia
de percurso. E um negro pintado de palhaço, quem é? A encruzilhada
carrega desígnios.
Desjardim é de múltiplas linguagens e intertextos. Tem o propósito
de auditar uma vida perdida. Não se amarram mais ladrões em árvores. A
beira da trilha inominada de cada um sempre haverá a mescla silenciosa
de nossas culpas sistematizadas, de resignações neuróticas, de sublimações desviadas, pesadelos e sequelas. Há um circo armado em cada
encruzilhada.
Em Desjardim, tudo pode acontecer no curso do caminho em desvario. Sempre estivemos presentes em todo local de nossa existencialização. Somos assim a melhor e a pior testemunha com presencial de defesa
contra nós mesmos. Perturbados ou sob pressão de estadia, precisamos
pensar percursos e rever trajetos. Nada ficará impune para sempre. A volta
para casa pode ser a própria casa em que estamos, o lugar nosso de ser e
de buscar um sentido.
Parafraseando Mia Couto, “Que lugar em nós é a casa?” Tudo passa
pelo fio de navalha do remorso, e todo questionamento é clarificado pela
consciência sob pressão; com uma perspectiva de delírio, perseguição,
horror e morte, feito uma emergencial mudança da estação. Que lugar,
afinal, é o DESJARDIM? Muito além do farol do fim do mundo pode ser
qualquer lugar, como qualquer um pode ser posto a prova em juízo de
confinamento, jugo e valor. Essa é a ideia deste romance, cujo leitmotiv é
essa passagem, a travessia; os deslocamentos, retornos (Itararé, sentimentos, consciência, culpa, memórias revisitadas e a angústia-vívere); acontecências em trânsito (às vezes em pânico), um não ser num não lugar? O
mundo de cada um pode acabar num outro mundo. Contextualizando o
entorno, você pode não sacar as regras inteiras todas, e vai precisar delas
para sobreviver no seu limite, e até arguir em sua legítima defesa infinita e
particular; compreender o soro da razão, estimar pesadelos, remoer a ideia
da sobrevivência possível.
Que circo armado é o Desjardim da vida? Que acusações pesam
contra nós, e só nós, no íntimo, sabemos? Qual é a única saída de emergência inusitada? Quem intercederá por nós? Leia e tente se salvar também.
Talvez você invente uma chance. Talvez ainda haja tempo. O enigma da
vida passa por teias invisíveis que unem, cruzam, agridem ou agregam,
e podem intermediar a nosso favor, ou não. Que lugar você é? A sua cota
de culpas está colada em seu enredo existencial, ou você é só um maldito
vivo? Vai encarar? A pior loucura é quando não podemos nunca mais fugir
de nós, e então só nos resta um lugar qualquer (muito além do farol do fim
do mundo), o Desjardim, o que quer que ele realmente ou de surreal seja.
Bem-vindo ao seu inferno particular. O martelo ainda não sentenciou ninguém. Corra o risco. Um palhaço numa encruzilhada terreal de sua vida
vai esperar você também para o confronto final, e não está longe o seu dia.
Em que buraco você vai tentar se esconder?
Desjardim é um thriller que usa várias linguagens, mostrando uma
vida jovial em paradoxo e tudo o que reconstrói o entorno. O pragmatismo entre o que nos restará ser, depois de tudo o que a vida fez de nós.
Um tour de force com prisma no fantástico, focando tenebrosos tempos
contemporâneos.
Desjardim visita também o encantário, o fantástico; a própria clarificação muito além da selva de pedra da “louca vida” como cantou Cazuza.
Sofrer, um rito de passagem? Talvez Desjardim seja uma fábula sobre o
caminho, o horror da vida e até mesmo o próprio amor à vida. Essa é a
ideia da história, quase que uma fábula moderna. E um livro assim deve
servir como um machado para o mar congelado dentro de nós, como disse
Kafka. Mentes abertas, corações abertos. Talvez valha a pena. A madeira
torna-se flauta quando é amada.