Outubro, 2023 - Edição 296
Correia da Serra, um sábio entre os sábios
Conviveu com os grandes cientistas da sua época e com intelectuais
e políticos proeminentes das principais capitais da Europa e dos Estados
Unidos. As comemorações do segundo
centenário da morte desta personalidade do maior prestígio permitem
evocar a relação com brasileiros como
José Bonifácio, que impulsionou a
independência do Brasil.>
Um novo ciclo se iniciou em
Portugal com a Revolução de 1820.
Refletiu a corajosa determinação de
substituir as conceções absolutistas,
por estruturas políticas, sociais e culturais que fundamentaram um
novo regime, em que todos podem ouvir a sua voz, desde que se
possam concretizar as liberdades, direitos e garantias constitucionais. Houve a contribuição decisiva dos que permaneciam no exílio,
submetidos às contingências do ostracismo e da solidão; e de outros,
dentro de Portugal, que se empenharam na mesma luta, mas agindo
com a reserva e a discrição impostas pelo sigilo.
José Correia da Serra, cujo segundo centenário da morte
agora se completou, tem, finalmente, comemorações nacionais
em torno da sua vida agitada e da sua obra exemplar. Nasceu em
Serpa, a 5 de junho de 1751, e faleceu nas Caldas da Rainha, a 11 de
setembro de 1823, quando ali se recorria ao tratamento termal. Ali
ficou sepultado, sem que lhe prestassem as devidas homenagens.
Um dos seus biógrafos, Augusto da Silva Carvalho (1861-
1957), catedrático da Faculdade de Medicina de Lisboa, reconstituiu o percurso de Correia da Serra, nas Memórias da Academia das
Ciências (1948), divulgando fatos e documentos que permitiram
ampliar as investigações. É o caso de Michael Teague, em 1997, no
texto de apresentação do catálogo dos manuscritos arquivados na
Torre do Tombo, e que possibilitaram a retificação e o acréscimo
de questões primordiais. O Prof. Dr. José Luís Cardoso, presidente
da Academia das Ciências – que me alertou para esta circunstância – proferiu, no dia 15 de Setembro, no salão nobre da Academia
das Ciências, uma comunicação sobre As origens do programa
científico de Correia da Serra. Trata-se de mais uma contribuição
fundamental de José Luís Cardoso, que já se ocupara do livro do
Richard Beale Davis e que revelou a correspondência com Jefferson
e outros protagonistas da vida americana. Este livro, com uma
introdução de José Luís Cardoso, foi traduzido com o patrocínio
da Fundação Luso Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e
editado, em 2013, pela Imprensa de Ciências Sociais.
A obra Cidadão do Mundo: Uma biografia científica do Abade
Serra (Porto Editora, 2006), escrita por Ana Simões, Maria Paula
Diogo e Ana Carneiro, abriu novas perspectivas de conhecimento
e de análise crítica. Na reabertura do ano acadêmico de 2023/2024,
Maria Paula Diogo dissertou, na Academia das Ciências, acerca da
História, Botânica e Geologia na obra do Abade Correia da Serra.
Recapitulou alguns aspectos já destacados numa obra que revisitou, exaustivamente: os biógrafos e biografias de Correia da Serra; a
juventude em Itália; o regresso às origens; o refúgio em Londres; os
amores em Paris; o período americano; e, por último, o reencontro
com Portugal.
É de mencionar Ilídio do Amaral, autor de Estudos
Preliminares de Inéditos Juvenis de José Correia Serra. A propósito
do Catalogue raisonné des voyageurs de ma bibliotheque (1769)
(Edição Colibri, 2012). Coloca-nos perante a evolução de um
cientista internacional, como o atestam os depoimentos de váriossábios seus contemporâneos e as numerosas instituições científicas que o acolheram. Todavia, Ilídio do Amaral não deixou de
lembrar que, após o triunfo da revolução liberal, retomou o lugar
de Secretário da Academia, foi deputado às Cortes (1822-1823)
e desempenhou altos cargos, na Maçonaria, no Grande Oriente
Lusitano.
Numa retrospectiva sumária, podemos aludir que José
Correia da Serra era filho de Luís Dias Correia, médico formado
na Universidade de Coimbra, que se radicou em Itália, a fim de
escapar às garras da Inquisição. José Francisco Correia da Serra
tinha apenas 6 anos. Em Roma, licenciou-se em direito canônico
e optou pela vida religiosa. Ficou a ser amigo de D. João Carlos de
Bragança, Duque de Lafões, que conhecera o pai, na altura em que
ambos frequentaram a Universidade de Coimbra.
Já com o título abade Correia da Serra, regressou a Portugal.
Possuía o total apoio do Duque de Lafões. Um ano depois, juntamente com D. João Carlos de Bragança, fundaram a Real Academia
das Ciências de Lisboa. Sucederam-se as perseguições movidas
pelo Intendente Pina Manique. Abandonou o país para se fixar,
alguns anos depois de exercer o cargo de secretário geral da
Academia das Ciências. Esteve ao corrente da concessão de bolsas de estudos na Europa para jovens membros da Academia, tais
como os brasileiros Manuel Ferreira da Câmara e José Bonifácio
de Andrade e Silva, que impulsionaram a independência do Brasil.
Envolvido em novos problemas políticos, decidiu instalar-
-se no Reino Unido. Pelos seus altos méritos, ingressou na Royal
Society e na Sociedade Lineana de Londres. Operou-se, em 1801,
uma mudança inesperada na política portuguesa: Rodrigo de
Sousa Coutinho foi designado Secretário de Estado dos Negócios
Estrangeiros. Correia da Serra passou a ser secretário da representação diplomática portuguesa em Londres. Enquanto esteve em Paris,
colaborou com os enciclopedistas, nomeadamente, com Antoine
Laurent de Jussieu, Alexander Von Humboldt e Georges Cuvier.
Mas, por ocasião da terceira invasão francesa em Portugal,
terá sido instigado para subscrever um documento para justificar
a política napoleônica. Ao recusar, terminantemente, Correia da
Serra, mais uma vez, viu-se obrigado a procurar o exílio político,
no estado americano da Virgínia. Chegou, em 1812, a Washington,
com cartas de recomendação, de individualidades francesas, com
influência na política americana. Uma delas do Marquês de
Lafayette. Filadélfia constituiu, porém, o seu espaço privilegiado.
Foi logo admitido na American Philosophical Society. Verificouse, de imediato, a amizade recíproca e a admiração mútua entre
Correia da Serra e Thomas Jefferson. Em Monticello frequentou,
com assiduidade, a residência palaciana da família Jefferson.
Voltou a Portugal em 1820. Estava implantada a revolução
liberal. Eleito deputado às Cortes, participou na construção de um
Portugal que apostava nos imperativos do presente e do futuro.
Está com o prelado Francisco de Lemos (1735-1822) durante quatro décadas Bispo de Coimbra e promoveu a total remodelação da
Universidade de Coimbra. Encontra-se com Correia da Serra entre
os deputados das constituintes e que incluíram representantes do
Rio de Janeiro, de São Paulo, de Pernambuco, de Goiás, do Espírito
Santo, do Maranhão, de Minas Gerais, do Pará, de Paraíba, do Rio
Grande do Norte e de Santa Catarina. Ao todo, 65 deputados. Outro
nome de grande notoriedade é José Bonifácio (1763-1838) conforme já pormenorizamos.
Na sessão efetuada na Academia das Ciências, além das intervenções que anotamos, José Alberto Silva e Fernando Figueiredo
apresentaram uma comunicação a propósito dos Ensaios para a
História da Academia das Ciências. As finalidades estatutárias definidas por Correia da Serra ficaram, logo no princípio, sintetizadas
na legenda: Nisi utile est quod facimus, stulta est gloria. Ou seja, na
tradução portuguesa: Se não for útil o que fazemos, a glória é vã.
Decorridos mais de dois séculos, perdura o objetivo de Correia da
Serra de unir o que está disperso, ao circunscrever a ciência e, de
um modo geral, a cultura, ao serviço integral do aperfeiçoamento
humano.