Outubro, 2023 - Edição 296
O Livro do Desassossego (e do metaverso) de Pessoa
Vem de longe minha relação com Fernando Pessoa. Aluno de literatura do professor Brandão, na terceira série do segundo grau do Colégio
Cearense, em Fortaleza, escolho o texto para o trabalho de conclusão do
curso, os versos de “Aniversário”, do heterônimo Álvaro de Campos:
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos e a minha estava certa com uma religião qualquer.
(...)
Meses depois, submeto-me, na Universidade Federal do Ceará, ao
vestibular para a Faculdade de Medicina. Abro o caderno da prova de língua portuguesa que tem, como texto-base... o “Aniversário”, que eu sabia
de cor! Respondi a todas as questões em menos de uma hora, e tive de
esperar outra para poder sair da sala. Cruzei os braços, apoiei a cabeça e
só não dormi porque o fiscal me veio perguntar se estava sentindo alguma
coisa. “Alegria!”, tive vontade de responder, certo de que não errara nada...
E assim foi.
Leio agora, da primeira à última página, o Livro do Desassossego
(São Paulo: Companhia das Letras, 1999), “composto por Bernardo Soares,
ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa”, como se lê no subtítulo.
Poucas obras impressionam, pela substância humana, pela profundidade
do pensamento, pelo primor literário quanto essa criação de Fernando
Pessoa, daqueles monumentos com a grandeza do Guerra e Paz de Tolstói,
da Recherche de Proust, do Ulisses de Joyce. E começa por inquietar a partir do gênero: ficção? ensaio? memória? ou tudo ao mesmo tempo? Para
Richard Zenith, biógrafo de Pessoa, organizador e apresentador da edição
brasileira, o que temos aqui não é um livro mas a sua subversão e negação, o livro
em potência, o livro em plena ruína, o livro-sonho, o livro-desespero, o
antilivro, além de qualquer literatura (...). Um não-livro dentro da não-
-Biblioteca (...). Nenhuma obra de Pessoa interagiu tão intensamente
com o resto do seu universo (...). Jamais outro escritor conseguiu passar, de modo tão direto e nítido, a sua alma para a folha escrita. O Livro
do Desassossego é uma fotografia estranhíssima, feita com palavras, a
única matéria capaz de captar os recessos da alma aqui revelada.
Segundo o próprio autor, Bernardo Soares é um semi-heterônimo,
“aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um
pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição (...). É um semi-
-heterônimo porque, não sendo a personalidade a minha, é não diferente
da minha, mas uma simples mutilação dela”. Para o biógrafo José Paulo
Cavalcanti Filho, Soares é o melhor de Fernando Pessoa, “e, sobretudo para
os leitores mais exigentes, ali está o gênio em seu mais alto nível. Assim o
tenho”. Nele, há muito do escritor: Bernardo tem emprego de guarda-livros
da Casa Vasques & Cia, como Fernando era correspondente comercial na
Casa Moitinho de Almeida. Ambos vivem modestamente, obscuramente,
moram em pequenos quartos no centro de Lisboa, de onde saem pela
manhã e para onde voltam ao cair da noite, a caminhar por ruas em que se
sentem em comunhão com anônimos tão simples quanto eles, e até com
coisas tão pequenas que a maioria nem percebe, mas causadoras de quase
epifanias para Soares:
Quanto não me provoca na alma de sonhos e amorosas delícias a mera
existência insignificante dum alfinete pregado numa fita! Triste de
quem não sabe a importância que isso tem! (...) Benditos sejam os instantes, e os milímetros, e as sombras das pequenas coisas, ainda mais
humildes do que elas!
Em poucos livros, mostra-se tão lúcido o sentimento da insignificância do ser e do viver, transformado em reflexões que enlevam pelo
apuro da linguagem e pela beleza do estilo:
Quem vive como eu não morre: acaba, murcha, desvegeta-se. O lugar
onde esteve fica sem ele ali estar, a rua por onde andava fica sem ele lá
ser visto, a casa onde morava é habitada por não-ele. É tudo, e chamamos-lhe o nada; mas nem essa tragédia da negação podemos representar com aplauso, pois nem ao certo sabemos se é nada, vegetais da
verdade como da vida, pó que tanto está por dentro como por fora das
vidraças, netos do Destino e enteados de Deus, que casou com a Noite
Eterna quando ela enviuvou do Caos que nos procriou.
Ideias que ganham força pelo emprego da antítese, da contradição,
do oximoro:
Tanto tenho vivido sem ter vivido! Tanto tenho pensado sem ter pensado!
Pesam sobre mim mundos de violências paradas, de aventuras tidas sem
movimento. Estou farto do que nunca tive nem terei, tediento de deuses
por existir. Trago comigo as feridas de todas as batalhas que evitei. Meu
corpo muscular está moído do esforço que nem pensei em fazer.
Recursos a que também se deve a antológica definição de uma das
marcas do Livro do Desassossego, com engenho e arte à altura de Camões:
O tédio... Pensar sem que se pense, com o cansaço de pensar; sentir
sem que se sinta, com a angústia de sentir; não querer sem que se não
queira, com a náusea de não querer – tudo isso está no tédio sem ser o
tédio, nem é dele mais do que uma paráfrase ou uma translação. É, na
sensação direta, como se de sobre o fosso do castelo da alma se erguesse a ponte levadiça, nem restasse, entre o castelo e as terras, mais que
o poder olhá-las sem as poder percorrer. Há um isolamento de nós em
nós mesmos, mas um isolamento onde o que separa está estagnado
como nós, água suja cercando o nosso desentendimento. (...) O tédio é
a falta de uma mitologia. (...) Sim, o tédio é isso: a perda, pela alma, da
sua capacidade de se iludir, a falta, no pensamento, da escada inexistente por onde ele sobe sólido à verdade.
Sobre o idioma em que escrevemos, Bernardo Soares discorre com
graça e leveza:
Minha pátria é a língua portuguesa. (...) Ofende-me o entendimento
de que um homem seja capaz de dominar o Diabo e não seja capaz de
dominar a língua portuguesa. Por que há o comércio com os demônios
de ser mais fácil que o comércio com a gramática? Quem, através de
longos exercícios de atenção e de vontade, consegue, conforme diz, ter
visões astrais, por que não pode, com menor dispêndio de uma coisa
e de outra, ter a visão da sintaxe? Que há no dogma e no ritual da Alta
Magia que impeça alguém de escrever, já não digo com clareza, pois
pode ser que a obscuridade seja da lei oculta, mas ao menos com elegância e fluidez, pois no próprio abstruso os pode haver? Por que há de
gastar-se toda a energia da alma no estudo da linguagem dos Deuses, e
não há de sobrar um reles bocado com que se estude a cor e o ritmo da
linguagem dos homens? (...) O ter tocado os pés de Cristo não é desculpa para defeito de pontuação.
A décadas de distância do movimento que hoje se nomeia
LGBTQIA+, Pessoa, com agudeza, já era sensível às questões de gênero:
Suponhamos que vejo diante de nós uma rapariga de modos masculinos. Um ente humano vulgar dirá dela, “Aquela rapariga parece um
rapaz”. Um outro ente humano vulgar, já mais próximo da consciência
de que falar é dizer, dirá dela: “Aquela rapariga é um rapaz”. Outro
ainda, igualmente consciente dos deveres da expressão, mas mais animado do afeto pela concisão, que é a luxúria do pensamento, dirá dela:
“Aquele rapaz.” Eu direi: “Aquela rapaz”, violando a mais elementar
das regras da gramática, que manda que haja concordância de gênero,
como de número, entre a voz substantiva e a adjetiva. E terei dito bem:
terei falado em absoluto, fotograficamente, fora da chateza, da norma e
da quotidianidade. Não terei falado: terei dito.
Estava, mesmo, adiante do seu tempo, ao escrever, avant la lettre,
sobre a realidade virtual, o metaverso, conceitos filosófico-científicos
cujas fontes primeiras nos remetem à caverna de Platão. Que vem a ser
o que julgamos real? E se tudo não passar de um sonho, sem que disso
tenhamos consciência? Matéria fascinante (e assustadora) da trilogia
Matrix, clássicos do cinema contemporâneo escritos e dirigidos pelas
irmãs Lilly e Lana Wachowski, tema que já inquietava o autor português:
Às vezes, em plena vida ativa, em que, evidentemente, estou tão claro
de mim como todos os outros, vem até à minha suposição uma sensação estranha de dúvida; não sei se existo, sinto possível o ser um
sonho de outrem, afigura-se-me, quase carnalmente, que poderei ser
personagem de uma novela, movendo-me, nas ondas longas de um
estilo, na verdade feita de uma grande narrativa. (...) E sei eu se não sou
eu o sonho e tu a realidade, eu um sonho teu e não tu um sonho que
eu sonhe?
Chega-se à última página do Livro do Desassossego entre a emoção e a melancolia: emoção de haver lido uma grande obra da literatura
mundial, em todos os tempos; melancolia por, talvez, nunca mais viver
experiência semelhante. Esse, o legado maior de Fernando Bernardo
Soares Pessoa, gênio que, mais do que destinado à literatura, sabia-se para
sempre condenado a ela:
Para mim, escrever é desprezar-me; mas não posso deixar de escrever.
Escrever é como a droga que repugno e tomo, o vício que desprezo e
em que vivo. Há venenos necessários, e há-os sutilíssimos, compostos
de ingredientes da alma, ervas colhidas nos recantos das ruínas dos
sonhos, papoilas negras achadas ao pé das sepulturas dos propósitos,
folhas longas de árvores obscenas que agitam os ramos nas margens
ouvidas dos rios infernais da alma.
Escrever, sim, é perder-me, mas todos se perdem, porque tudo é perda.
Porém eu perco-me sem alegria, não como o rio na foz para que nasceu
incógnito, mas como o lago feito na praia pela maré alta, e cuja água
sumida nunca mais regressa ao mar.