Outubro, 2023 - Edição 296
O Dicionário Aurélio
Um dos mais vendidos e consultados dicionários de língua portuguesa,
editado em papel, é o do Aurélio Buarque
de Holanda Ferreira, que tem mais incoerências, falhas e erros do que se possa
imaginar. O sucesso desse dicionário talvez se deva menos ao critério que norteou
sua confecção do que ao fato de ser um
volume único, e, portanto, mais facilmente
manuseável. O de Caldas Aulete é em cinco
volumes; o de Laudelino Freire, em quatro;
o de Cândido de Figueiredo, em dois; o de
Moraes Silva, o melhor de todos, também
em dois. O de Silveira Bueno, embora num
volume só, é ruim demais; o de Celso Luft, incompleto; o de
Macedo Soares, em dois, e esgotado.
O Aurélio, versão em papel, teve seu início no Pequeno Dicionário
Brasileiro da Língua Portuguesa, organizado por Hildebrando de Lima,
revisto por Manuel Bandeira e José Baptista da Luz. Em 1975, Aurélio
Buarque lança o dicionário com seu nome na capa, e o nome anterior
deixou de existir. A segunda edição ocorreu em 1986. Pouco depois,
Aurélio lança o dicionário com o nome de Novo Dicionário da Língua
Portuguesa, pela Editora Nova Fronteira. Depois da morte de Aurélio
Buarque de Holanda Ferreira, em 1989, familiares assumiram a edição
do Dicionário com o nome de Aurélio Século XXI – O Dicionário da
Língua Portuguesa. Em 1999, saiu a primeira edição em CD, mesmo
ano em que saiu a 3ª edição do Dicionário em papel, a última com o
selo da Nova Fronteira. A partir da 4ª edição, em 2009, o livro passou a
ser editado pela Editora Positiva. Consulto a 4ª edição, já com a nova
ortografia, em CD, que saiu pela Positiva, de acordo com o Volp de
2009.
Mas o sucesso do dicionário não é proporcional à qualidade.
Senão, vejamos.
No verbete ponto e vírgula, o dicionarista dá dois plurais: ponto
e vírgulas e pontos e vírgulas, declarando preferir a primeira forma de
plural (a pior, porque não se trata de nome composto, mas de dois
nomes unidos pela conjunção) preconizada por Nélson Vaz, sem estabelecer os critérios de sua preferência.
A definição de cacófato (“Som desagradável, ou palavra obscena, proveniente da união das sílabas finais de uma palavra com as
inicias da seguinte”) exclui como cacófatos expressões como “Maria
não tem pretensões acerca dela”, “Eva coava café”, ou “Ataulfo Dias”,
em que o som desagradável ou obsceno é formado por palavras inteiras, nos dois primeiros exemplos, e pelo final de uma palavra com a
palavra seguinte inteira, no último exemplo. Além disso, o Dicionário
informa que cacófato é sinônimo de cacofonia, mas o encontro de
sons desagradáveis na cacofonia não implica sentido obsceno, nem
inconveniente, que apenas o cacófato produz. Veja-se, a respeito, o
Dicionário de Termos Literários, de Massaud Moisés (2. ed. São Paulo:
Cultrix, 1978, s. v. cacofonia).
Um exemplo de arbitrariedade é o verbete por-favor-me-pegue,
mantido de maneira pouco científica desde a primeira edição em
papel: “Na Ilha da Trindade, peixe de uns 30cm de comprimento, muito
abundante, e que é pescado com balde pelos marinheiros que servem
ali.” Segue-se um exemplo de Moacir C. Lopes, do romance Maria de
Cada Porto. Ora, não consta nenhuma característica científica desse
peixe, além do habitat na ilha e do comprimento. Não há o nome da
espécie, nem o nome da família, nem o hábito alimentar, nem o nome
científico por que deveria ser conhecido, como fez o dicionarista, por
exemplo, no verbete sardinha. O dicionarista apenas citou o nome
vulgar do peixe citado por Moacir Lopes pela facilidade com que é
pescado. Mas esse nome pode ter sido inventado pelo romancista, por
direito de ficcionista. E não é a primeira vez que um escritor usa um
nome inventado: Manuel Bandeira, no livro Andorinha, Andorinha
(Rio de Janeiro: José Olympio, 1957, p. 9), na crônica “Gosmilhos na
pensão”, usou o nome “gosmilho” para batizar uma flor em um dos
seus poemas, por informação falsa de um jardineiro de Petrópolis. E
“gosmilho” simplesmente é nome que não existe.
Se formos ao verbete calvário, encontraremos a informação de
que se trata da tradução do aramaico gulguta (“crânio”), sinônimo,
portanto, de gólgota. Se formos ao verbete gólgota, lá encontraremos
a informação de que se origina do aramaico golgolta (“crânio”). Fica a
pergunta: qual é o étimo de gólgota? Gulguta ou golgolta?
O Aurélio apresenta variantes lusitanas tanto prosódicas (como
combóio, no verbete comboio) quanto gráficas de muito vocábulos,
como carácter e facto (correspondentes a caráter e fato, no Brasil),
mas ignora faxe, saxe e foxe, que se usam em Portugal e que podem
justificar o plural de seus correspondentes fax, sax e fox, de curso no
Brasil, que o dicionarista informa serem invariáveis em número. Como
o inglês box, grafado boxe, em português, com o plural regular boxes.
Curiosamente, a 2ª edição do Aurélio, versão em papel, registrava os
plurais foxes e saxes, para fox e sax. A 3ª edição, já a cargo dos herdeiros
do dicionarista, só registra fox e sax como invariáveis.
Embora registre muitas palavras e siglas em inglês de uso no
Brasil, como office-boy e www, deixa de registrar muitas outras também de uso generalizado, como motoboy (hibridismo) e htttp, por
exemplo. Aliás, há muitas palavras que não se encontram no Aurélio,
embora de uso corrente, como elencar, coocorrer, dentopalatal, edomita (povo bíblico que vivia ao sul do Mar Morto), monera (bactéria),
pingue-pongue etc. A preocupação com o inglês técnico fez esquecer
o próprio vernáculo.
No verbete bege, o Aurélio informa que se trata de um adjetivo
de dois gêneros e dois números, vale dizer, invariável. Mas registra
exemplo extraído do livro Os Barões da Candeia, de Ana Elisa Gregori,
em que o adjetivo bege aparece no plural, contrariando a informação
do verbete: “As meias grossas, beges, protegem as pernas brancas.” No
verbete suarabácti, lê-se que se trata de nome masculino, mas, no verbete seguinte, suarabáctico, a palavra suarabácti é citada no feminino:
“relativo à suarabácti.”
No verbete saliente, a explicação: “que avança ou sai para fora
do plano a que está unido”. Como se fosse possível sair para dentro...
Defender o pleonasmo vicioso “sair para fora”, sob a alegação do editor de
que se pode sair para cima e para os lados, é esquecer que sair para cima
ou para qualquer lado implica sempre e obviamente direção para fora.
No verbete trigonometria, a explicação: “parte da matemática
em que se estudam as funções trigonométricas”. O consulente vai
ao verbete trigonométrico e encontra: “relativo à trigonometria.” Um
termo a ser definido não pode constar da definição, para evitar a circularidade. Melhor definição dá-no-la o Dicionário da Academia das
Ciências de Lisboa: “ramo da matemática que estuda as relações entre
os lados e os ângulos de um triângulo a fim de calcular alguns desses
elementos a partir de outros, operação conhecida como relação de
triângulos.”
No verbete explodir, o Aurélio informa, na última acepção, que
explodir é verbo defectivo, “não conjugável na 1ª pessoa do sing. do
pres. do ind. nem, portanto, no pres. do subj.”. No entanto, ao lado do
verbete, aparece a conjugação completa do verbo explodir, com todas
as formas que o Dicionário declara inexistentes...
Os elementos significativos que fazem parte da rede de relações
chamada língua se chamam formas. Formas livres são as que se podem
pronunciar isoladamente, constituindo-se num enunciado completo,
como livro, caneta, pasta. Formas presas são as que se associam às
formas livres e não se podem pronunciar separadamente, como o {–s}
final de livros, que significa “mais de um”, ou como as terminações
verbais. Formas dependentes são os elementos átonos que dependem
de outro vocábulo, mas não se prendem diretamente a ele, como os
pronomes pessoais átonos que podem pronunciar-se antes, depois ou
no meio do verbo: eu te amo, amo-te, amar-te-ei.
As formas livres, presas ou dependentes se chamam também
morfemas. Os morfemas são representados entre chaves. Assim, {-a}
é o morfema do feminino. Os sufixos e os prefixos são morfemas, são
formas presas. O que caracteriza o morfema, ainda que não possa ser
pronunciado isoladamente, como o {–s} que marca o plural, é o fato de
ele ser dotado de significação. Há línguas em que, além do prefixo (que
se acrescenta no início de uma forma base) e do sufixo (que se acrescenta no fim de uma forma base), há o infixo, que se acrescenta no
meio da palavra base. Na língua iana ou ianam (do grupo ianomâmi),
por exemplo, o infixo {-ru} indica plural: kuwi (curandeiro) – kuruwi
(curandeiros). Em mísquito, língua indígena do Panamá, a noção
de posse é indicada por infixos: napa (dente) – naipa (meu dente) –
nampa (teu dente).
Chama-se vogal ou consoante de ligação o fonema que se
acrescenta entre a forma base e o sufixo para facilitar a pronúncia. Se
acrescentamos o sufixo {–eira} à forma base licor, temos licoreira. Se, no entanto, à palavra café acrescentarmos o sufixo {–eira}, teremos
de pôr um t antes: cafeteira. O t não é um morfema, porque não tem
significado, e sua função é apenas fônica. Da mesma forma, se acrescentarmos a forma cultura à forma café, teremos cafeicultura. A vogal
i tem apenas função de eufonia, não tem significação.
O dicionário Aurélio, no verbete próprio, define infixo adequadamente como um afixo (morfema) interno, mas exemplifica com as
consoantes de ligação de chaleira e motorneiro. Ora, as consoantes
de ligação não podem ser infixos, porque não são morfemas, não têm
significação. Felizmente, o Houaiss não endossa essa lição. Não existe
infixo em português.
Logo que saiu a 3ª edição do Aurélio, Cláudio Abramo publicou
no Suplemento Mais! da Folha de São Paulo, em 23 de janeiro de 2020,
um artigo intitulado “Dicionário, que horror”, em que tece críticas
construtivas e procedentes aos dicionários Michaelis e Aurélio. A reação do editor do Aurélio, Paulo Geiger, no dia 13 de fevereiro de 2020,
foi a de atacar o articulista. Cláudio Abramo e o editor encerraram a
“polêmica” no dia 5 de março de 2020: aquele atacando a obra; este,
tentando mostrar a eficiência dos lexicógrafos e do planejamento da
obra. Remeto o leitor aos exemplares do jornal Folha de São Paulo, da
época da polêmica, ou à seguinte página da Internet: http://sites.uol.
com.br/cwabramo.
A propósito, enviei, em março de 2002, um e-mail ao editor de
obras de referência da Nova Fronteira, Paulo Geiger, a fim de alertá-lo
de que o Minidicionário Aurélio tinha errado na divisão silábica de
parapsicologia. Como se trata de uma palavra só, sem hífen, a divisão
deve ser pa-rap-si..., mas o Miniaurélio ensina assim: pa-ra-psi... Basta
lembrar, por exemplo, palavras como rapsódia, lapso, silepse, em que
a divisão silábica recomendada oficialmente mantém as consoantes
Paulo Geiger enviou-me por e-mail o seguinte argumento
inconcebível num editor de obras de referência: “(...) a palavra psicologia se separa psi-co-lo-gi-a, e seria confuso e estranho (sic) separar
foneticamente pa-rap-si-co-lo-gi-a, ainda mais que para também
tem uma estrutura muito clara na composição com psicologia. É uma
exceção (o grifo é meu) defensável pelo fato de ps estar no início da
palavra, o que impede a separação do p e do s, como acontece em
si-lep-se, ca-ta-lep-si-a etc. De novo, nessa área limítrofe, há que respeitar critérios, mesmo que se discorde deles, pois sua origem não é
desatenção, desrespeito à gramática ou a verdades estratificadas etc.,
e sim uma aplicação consciente de um critério construído com lógica
e bom senso.” (A transcrição é ipsislitteris.)
Ora, a divisão silábica proposta pelo Minidicionário só teria
sentido se parapsicologia se escrevesse com hífen. Quanto à divisão
silábica em psicologia, é óbvio que, por serem iniciais, as duas consoantes se mantêm juntas por não haver nenhuma vogal antes em
que a primeira delas se apoie, como em mnemônica, tmese, pneu, e
quejandos, que começam com duas consoantes juntas.
Além disso, o editor inventa teorias sem respaldo científico a
que o consulente não tem acesso e põe-nas em prática no desrespeito
às normas oficiais, por uma questão de estranho “bom senso” que o
consulente ignora. O erro da divisão silábica de parapsicologia fica
mantido em detrimento da norma, para manter uma coerência que só
existe para os autores do dicionário, que deveriam saber, por dever de
ofício, que um dicionário não é um livro de doutrina, nem tampouco
uma gramática, e têm a obrigação de respeitar e não de mudar as normas gramaticais e ortográficas vigentes, ainda que delas discordem.
Não contente com essa confissão de desobediência às normas
oficiais, o editor Paulo Geiger envia-me outro e-mail dizendo que o
Minidicionário Houaiss e o Michaelis também fazem a mesma divisão
silábica de parapsicologia, mantendo as consoantes
Citar exemplos de escritores era uma atitude válida para o latim, porque não
há maneira de saber como funcionava a sintaxe latina e o emprego de
vocábulos latinos, a não ser consultando-se os textos de autores como
Ovídio, Virgílio, César e Catullo, por exemplo. Mas esse método não
funciona adequadamente quando se estuda uma língua viva, porque
o objetivo de um escritor é escrever diferentemente dos outros, numa
linguagem conotativa, subvertendo a sintaxe, como atestam depoimentos conscientes de bons escritores, como Autran Dourado (Cf. O
meu Mestre Imaginário. Rio de Janeiro: Record, 1982, p. 58-60) e até de
bons gramáticos, como Celso Cunha (Ver: Uma Política do Idioma. Rio
de Janeiro: São José, 1964, p. 19 e 22). É possível consultar textos não
conotativos, não artísticos, para estudar a norma culta de uma língua
viva. A norma culta portuguesa foi sedimentada pela linguagem jurídica, não pela linguagem literária. Eram os textos jurídicos que faziam
as vezes de cartilhas de alfabetização (Cf. José Ariel Castro, no capítulo
“Formação e desenvolvimento da língua nacional brasileira”, no vol.
I da obra dirigida por Afrânio Coutinho. A Literatura no Brasil. 3. ed.
Rio de Janeiro: José Olympio/UFF, 1986, p. 272.) Nossos primeiros
gramáticos e ortógrafos, como Fernão de Oliveira e Duarte Nunes de
Leão, não citavam seus contemporâneos de labor poético. Suas observações nasceram do convívio com as pessoas cultas da época. Fernão
de Oliveira, por exemplo, quase sempre, ao citar seus conterrâneos,
como João de Barros ou Garcia de Resende, fazia-o para contestá-los.
Assim, parece-me inadequado citar escritores para abonar regras ou o
emprego de palavras e verbos. A regência de um verbo como responder, em Machado de Assis, pode opor-se à empregada por outro autor
de mesma grandeza, como Carlos Drummond de Andrade.
Assim,
embora o Dicionário de Verbos e Regimes de Francisco Fernandes
conste da bibliografia do Aurélio, pelo menos nas versões anteriores
em papel, os exemplos do emprego de usufruir e deparar, de autoria
de Nélida Piñon e de Clarice Lispector, respectivamente, em verbetes
próprios, desrespeitam a regência prescrita por Francisco Fernandes e
pelos bons gramáticos contemporâneos. Por essa razão é que o Aurélio
abonou um plural inexistente da palavra bege, calcado, como vimos,
linhas atrás, num exemplo de uma escritora que não tem compromisso com a gramática normativa, mas com a própria arte.
Parece-me que pretendem atualizar o Aurélio com o acréscimo
de palavras de uso recente. Creio que não é o uso generalizado que
deva orientar a inclusão de um verbete num dicionário de língua. A
moda passa. O que Mattoso Câmara Jr. chamou de “espírito de campanário”, traduzindo o “esprit de clocher” saussuriano, funciona na
língua como uma reação ao princípio de intercurso. É essa reação
a principal responsável pela adaptação de vocábulos estrangeiros à
feição e ao gênio da língua, a reprimir as influências estranhas e a
manter-se fiel à tradição e à índole da língua.