Outubro, 2023 - Edição 296
Fiandeira – Raquel Naveira
São palavras de Raquel Naveira na apresentação de sua obra Fiandeira:
“Sou uma fiandeira, / Vivo à beira / De tudo aquilo que é frágil, / Que
parece fiapo /Ou que está por um fio.”
Com essa autodenominação, Raquel Naveira junta-se à longa lista de
fiandeiras da literatura universal e, da mesma forma que elas, invoca a figura
singular das Deusas Tecelãs que fiam e entrelaçam não só a vida humana, mas
também o destino do mundo, pois a poeta sul-mato-grossense sabe-se mulher
habilidosa em seu ofício ao fiar, tecer e construir o universo que a rodeia. Sabe
que aquilo que é frágil se torna pertinaz; aquilo que está por um fio se torna forte
e vigoroso em suas mãos poéticas.
As Moiras, as Parcas, as Nornas, as Weird Sisters, as Valquírias, Penépole,
todas são fiandeiras, consideradas arquétipos na literatura, representando simbolismos recorrentes em diferentes obras de diferentes culturas.
As fiandeiras desempenharam um papel crucial na história ao produzir
trilhas essenciais para a vida cotidiana e ao transmitir conhecimentos tradicionais de geração em geração. Além disso, sua presença na literatura contribuiu
para a construção de significados culturais associados a essa atividade artesanal,
enriquecendo o imaginário coletivo ao longo dos tempos.
Ao ler Fiandeira, o conjunto dos textos me pareceu uma colcha a ser
desvendada quanto à mágica dos bordados tecidos. Cada um dos arabescos
poéticos tinha infinitos traçados de infinitas linhas de infinitas cores a mostrar
– caminhos de uma realidade física e longos trajetos calçados de sonhos e do
fantasioso da autora.
Imbuída pelo fascínio de suas antecessoras, Raquel Naveira teceu o seu
mundo dual – realidade e supra realidade, onde fia as emoções, as imagens, os
sentimentos compartilhados, as ausências... tudo em inquestionáveis aspectos
atemporal e universal.
Embora Fiandeira date de 1992, e os tempos modernos sejam outros, Raquel
Naveira, fiandeira que é, cria um microcosmo em que as ideias, deliciosamente, se
tornam atuais, vivas, pois a autora, com o manejo simbólico, controla o destino de
seus personagens a partir do conhecimento do tempo tal as antigas fiandeiras.
Graças à arte da autora, seus poemas e textos em prosa ficam-nos na
memória, em um vai e vem constante, seja pelo caráter religioso, existencial, mitológico, de admiração pela terra natal, seus habitantes comuns e/ou personalidades.
Fiandeira é uma obra de formação, pois Raquel Naveira, com sabedoria
e significativa dose enigmática, próprias das singulares tecelãs, traz indubitável
aprendizado intelectual e emocional ao leitor, ora apresentando orientações, ora
reflexões aos perenes mistérios da vida. Por um lado, simboliza a laboriosidade
e a importância do trabalho, no caso, o labor com as palavras; por outro lado,
configura-se uma evocação do senso de mistério e magia.
Fiandeira é leitura de muitas vezes... É leitura de deleite... É leitura que
resiste ao tempo... e quanto mais o tempo passa, mais ela cresce e se agiganta.
Uma obra rica pela presença do trabalho semântico. A autora afirma seu
fascínio pelos sinônimos, antônimos, polissemia, pelas figuras de linguagem
e pela inserção de vários autores, teóricos e poetas que com ela comungam a
devoção à poesia. Quanto a isso, Raquel Naveira se põe de mãos dadas com
Adélia Prado e Edgar Allan Poe ao discutirem sobre a presença da tristeza no
“tecer” de um poema: a poesia tem a capacidade de encontrar beleza nas emoções mais sombrias; pode ser vista como uma faceta complexa e significativa da
experiência humana, e a poesia pode ressaltar essa beleza inerente mesmo nas
circunstâncias mais difíceis.
É importante ressaltar que a criação poética não se limita apenas à
tristeza. Poetas podem encontrar inspiração em uma variedade de emoções,
experiências e temas, e a poesia pode ser um meio de explorar a gama completa
da experiência humana, incluindo alegria, amor, esperança e muito mais. Cada
emoção traz sua própria riqueza e profundidade para a poesia, permitindo que
os poetas expressem a complexidade da vida em suas palavras. O que Raquel
Naveira faz com sutil engenhosidade em “Casa da Tristeza”:
Moro na casa da tristeza
E da porta estreita
Vejo nascerem flores de melancolia. /
Moro na casa da tristeza
Onde é sempre outono
E o vento varre velhas ruínas...
Como acontece com todos os arquétipos, diferentes autores e culturas
podem interpretá-los de maneiras únicas e adicioná-los a suas histórias para
transmitir uma variedade de significados e mensagens. O arquétipo da fiandeira
continua sendo um tema relevante na literatura moderna, já que suas características atemporais ressoam com os leitores ao longo do tempo.
Raquel Naveira é enfática ao dizer, finalizando sua obra: “Escrever poesias
nos dias de hoje pode ser considerada uma tarefa solitária, inútil e insana. Mas
garanto-lhes, cheguei ao auge da loucura: vivo de poesia, pela poesia e para a poesia.”
Ela se questiona sobre os motivos que a levaram a escrever e desse questionamento surge o poema:
Sou uma fiandeira
Tecendo noite e dia
Uma estreita de pensamentos. /
Sou uma fiandeira
Aranha tirando de dentro
A liga que emaranha. /
Sou uma fiandeira
Amarrando com as mãos firmes
Os laços do meu destino...
O poema “Sou uma fiandeira” explora o processo de reflexão, criação e
crença da autora, utilizando a metáfora da fiandeira e da tecelagem para transmitir a complexidade da vida humana e o ato constante de moldar os pensamentos,
emoções e destinos – uma resoluta resposta ao questionamento inicial.
Em Impressões de Viagem I, II e III, Raquel Naveira expõe sua alma andarilha de poeta – ama viagens... Viajar é como chama incessante alimentada pela
inquietude e curiosidade. É essência nômade, que não se satisfaz com fronteiras
ou limites, mas anseia por explorar cada canto do mundo e descobrir os segredos
que se escondem além do horizonte.
Sonhei que era Maria Antonieta,
Tinha um castelo perfumado
Como uma flor na floresta;
Tinha uma sala de espelhos
E lagos para ver minha silhueta;
in “Maria Antonieta”
Em Madri
Ninguém sabe como é o pôr do sol daqui:
O colorido forte
De um quadro de Goya...
in “Da não existência de pôr-do-sol em Madrid”
... Eu observava a figura de uma mulher portuguesa,
Chale colorido de flores
E imaginava que chamava Maria
E que gostava de dançar o vira...
in “Azeite”
Essa alma andarilha da poeta é uma eterna buscadora de experiências,
sedenta por novas paisagens, culturas e encontros. A cada jornada, a poeta enriquece
seu ser com a sabedoria que só as vivências podem oferecer. Cada estrada percorrida
é uma oportunidade de se conectar com a humanidade em sua diversidade e pluralidade, enxergando as nuances que tornam cada pessoa e lugar únicos.
Sob a pele das palavras dos textos de Fiandeira, há uma delicadeza plenamente visível, sem dúvida, vestígio das leituras da infância da autora. Tais histórias têm um papel essencial na formação dos escritores que bebem nessa fonte
pura, inocente, límpida. Inspiram sua criatividade, a arte de uma linguagem cativante e acessível. Influência que pode ser vista nas obras da autora direcionadas
a leitores de todas as idades.
Se colheres no campo
Os mais brancos malmequeres,
Se com eles fiares na roca do luar,
Se jogares as vestes que teceres
Sobre os ombros de teus pares,
Eles deixarão de ser homens
E voarão como cisnes pelos ares...
in “Tarefa”
O poema “Tarefa” é exemplo dessa capacidade de tratar de assuntos
importantes de maneira sensível, permitindo explorar temas profundos, fantasiosos, significativos.
O ato de fiar pode ser uma metáfora da própria vida. Assim como as
fiandeiras transformam fibras em fios, a vida é tecida a partir de experiências e
escolhas que moldam o destino de cada pessoa. Essa metáfora é frequentemente
explorada em obras que abordam temas como o destino, a liberdade de escolha
e as consequências de nossas ações. O movimento repetitivo das fiandeiras
também pode ser associado ao ritmo do tempo, lembrando-nos da constante
passagem dos dias e da inevitabilidade do envelhecimento e da morte. Esse simbolismo é muitas vezes explorado em obras que refletem sobre a transitoriedade
da vida e a finitude humana.
Embora Raquel Naveira, conheça todas as entrelinhas do processo, suas
dificuldades, suas vitórias, suas ansiedades, ignorou qualquer tipo de “pedra no
meio do caminho”, ignorou o mundo inóspito atual, ignorou as palavras desgastadas e nuas e criou um cenário com vivacidade e perspicácia em que cantou a
plenos pulmões tudo que lhe é querido e valorizado.
Ela sabe que o poeta “é aquele que faz”. E fez da melhor maneira de que
é capaz. Versejou sobre nomes – quase uma obsessão, salvo pela fé cristalina que
coloca em suas observações poéticas. A mulher bíblica, a mulher do campo, as
santas e santos, as figuras históricas regionais, escritoras, não são só personagens
– todos têm nomes e sobre eles uma existência cantada em rimas e sensibilidade.
O empoderamento de escritoras diante da política, filosofia e sociologia é fundamental para promover a diversidade de perspectivas e vozes nessas
áreas do conhecimento. Historicamente, esses campos têm sido dominados por
figuras masculinas, e o papel das mulheres foi frequentemente subestimado ou
ignorado. No entanto, à medida que as sociedades avançam e reconhecem a
importância da inclusão, mais mulheres têm encontrado espaço para se destacar
nesses campos e contribuir com suas ideias e visões.
Raquel Naveira é uma dessas a carregar a bandeira!
A diversidade de perspectivas é enriquecedora para o avanço do conhecimento humano, e o empoderamento de escritoras é fundamental para garantir que suas vozes sejam ouvidas e respeitadas em todos os campos do saber,
incluindo a política, filosofia e sociologia.
Fiandeira é isso tudo! Uma obra para as gerações jovens conhecerem a
essência do ser humano na plenitude de seu companheirismo, olhando todos na
mesma direção.