Setembro, 2023 - Edição 295
Relembrando Millôr
Aproxima-se o centenário do nascimento de Millôr Fernandes,
humorista, desenhista, dramaturgo, escritor, poeta, tradutor e jornalista brasileiro.
Muitas serão as homenagens que lhe serão rendidas, com
absoluta justiça.
Como tive o privilégio de ser seu amigo, lembro de várias ocasiões especiais em que estivemos juntos.
Em uma delas, o professor Ivo Pitanguy me incumbiu de
agendar um jantar para que eles se reencontrassem, depois de muitos anos.
O jantar foi marcado em uma terça-feira na casa do professor
e eu fiquei de buscar o Millôr em casa.
Por volta das 17h, recebi um telefonema da D. Vanda, esposa
do Millôr, que não poderia acompanhá-lo, e queria me fazer um
pedido:
– Almir, tenho notado que o Millorzinho, ultimamente, tem
acordado mal-humorado quando bebe na noite anterior.
Fiquei calado, esperando o que ela ainda tinha para dizer.
– Queria te pedir para não deixá-lo beber durante o jantar.
Eu disse a ela que ficaria atento e que me esforçaria ao máximo para cumprir o que ela havia me pedido.
No horário combinado, acompanhado de Georgia, minha
mulher, peguei o Millôr na casa dele, na Aníbal de Mendonça, e
rumamos para a casa do professor, no alto da Gávea.
Logo que chegamos, nosso anfitrião já nos aguardava com
uma garrafa de Don Pérignon para brindar àquele encontro de dois
amigos que, mesmo sem se verem há muito tempo, eram pontos
importantes nas geografias afetivas do outro.
Durante o jantar, bebemos um borgonha branco e um bordeaux tinto, ambos escolhidos com carinho pelo mestre Pitanguy.
A impressão que tivemos era de que Millôr e Pitanguy conseguiram, em cerca de duas horas, colocar os assuntos em dia.
Essa impressão se desfez quando Millôr falou sobre um jogo
de tênis que ele teria ganho e Pitanguy teria pedido uma revanche.
Nosso querido professor disse que, pelo que se lembrava,
cada um tinha ganho uma partida e eles ficaram de marcar a partida
decisiva.
Nesse momento, Pitanguy nos convidou para acompanhá-lo
à biblioteca para resolver essa questão.
Lá chegando, ele perguntou ao Millôr o que ele gostaria de
beber.
– Um poire, disse ele sem hesitar.
Pitanguy pediu ao garçom que trouxesse a bebida, mas disse:
– Antes do seu poire, vamos tomar um conhaque que eu estou
guardando para abrir com você há muito tempo.
Levantou-se, foi até uma mesa onde repousavam algumas
garrafas e voltou com uma de Hennessy do século passado.
Foi uma dessas ocasiões que a gente deseja que não termine, em que todos nós nos limitamos a ouvir o que os dois gigantes
tinham a dizer.
Depois de uma calorosa despedida, deixamos Millôr em casa,
com uma expressão de genuína felicidade.
No dia seguinte, já no final da tarde, recordando do que havíamos bebido na noite anterior, me perguntei como estaria o Millôr.
Telefonei para D. Vanda e ela me agradeceu porque o
Millorzinho estava ótimo, super bem-humorado, a ponto de ter feito
a barba cantando.
As palavras da D. Vanda me deixaram aliviado.
Meus dois primeiros romances tiveram a apresentação escrita
pelo Millôr.
Em As Cores da Vida, ele se refere a Roma como a cidade “do
gênio humano exposto a céu aberto” e, em Elos Invisíveis, ele diz:
“Aprendi bem cedo, nos curiosos e livres caminhos de minha
leitura, que tudo o que a gente acha bom é bom. À medida que fui
lendo mais, embora tendendo ao mais difícil, nunca me afastei da
incomparável facilidade de Rubem Braga e dei um basta a qualquer
hierarquia.”
Millôr figura não só entre os amigos, mas, também, na galeria
de pessoas de exceção que tive a felicidade de conhecer.
Tomara que no próximo dia 16 ele tenha a companhia do
Bianco, do professor Pitanguy e de tantos outros amigos, no almoço
em comemoração ao seu centenário.