Setembro, 2023 - Edição 295
O corvo
Foi depois da chuva com rajadas de vento e trovões que o corvo
pousou em minha janela. A ave negra dos românticos, a que costuma planar sobre os campos de batalha a fim de devorar a carne dos cadáveres, a
astuta mensageira da morte saída da escuridão, pousou em minha janela.
A mesma cena lúgubre e gótica aparece no poema do escritor norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849). O poeta, um ser melancólico,
fechado em sua vida livresca, amargando a saudade atroz de sua amada
Lenora, que tão jovem partira deste mundo, ouve um ruído. Com o coração aflito, abre a janela e eis que penetra na sala um vulto, um corvo vindo
de eras ancestrais. Adeja pelo espaço e pousa sobre um busto, uma escultura da deusa da sabedoria, Minerva. O contraste: o branco do mármore
e as plumas pretas do pássaro empoleirado. É a alma da noite, a esfinge
negra, a ave sombria, a soleníssima figura. O poeta então fala com o pássaro. Pergunta o seu nome e o pássaro responde: “Nunca mais.” Pede então
que a ave vá embora e que alce voo e ela contesta: “Nunca mais, nunca,
nunca mais.” O poeta questiona: “És um profeta? Um anjo do mal?” E o
corvo repete: “Nunca mais.” A ave ficou imóvel, horas a fio, sobre o busto
de Minerva. A luz da lâmpada atirando ao chão a sua sombra. O poeta
reconhece que sua alma, presa àquela sombra, não se erguerá nunca mais.
Ligado à imagem do corvo está também o escritor de língua alemã,
nascido em Praga, Franz Kafka (1883-1924). Seus textos estão cheios de
brutalidade física e psicológica, de conflitos entre pais e filhos, de labirintos mentais, de transformações místicas como no célebre A Metamorfose,
em que o personagem, Gregor Samsa, se vê transformado num pavoroso
inseto. Em tcheco, “kafka” é corvo. Que ave simbolizaria melhor uma obra
voltada ao pesadelo? A romancista paulistana, Jeanette Rozsas, escreveu
Kafka e a Marca do Corvo. Ela nos conduz a uma emocionante aventura
existencial. Nessa narrativa, Kafka está vivo, em meio a angústias e impasses. Mal sabia ele que influenciaria outros escritores trazendo à tona o
magnetismo do absurdo kafkiano que gerou correntes como o realismo
mágico na literatura. Os personagens de sua biografia são marcantes: o pai
e antagonista implacável, Hermann Kafka, a quem escreveu a Carta ao Pai;
as paixões problemáticas: Felice Bauer, Julie Worhryzek, Milena Jesenká e
Dora Diamant. E o amigo e confidente, Max Brod, responsável pela divulgação da obra de Kafka, depois de sua morte. História triste, atormentada.
Kafka ouve o corvo da tuberculose, do castigo, da violência misturada com
amor. Geme e se entrega, pois, em matéria de arte, é preciso rejeitar a vida
para ganhá-la.
Todas as vezes que passo em frente ao Palácio do Catete, prédio
histórico do Rio de Janeiro, de arquitetura neoclássica, que abriga hoje o
Museu da República, intrigam-me aquelas aves de ferro colocadas no topo
da fachada. Serão águias? Abutres? Gralhas? Condores? Urubus? Corvos?
Harpias? O certo é que são assustadoras, de mau agouro, afinal, foi ali que
o Presidente Getúlio Vargas (1882-1954) suicidou-se com um tiro no coração, o sangue aos borbotões manchando o pijama listrado. Esse homem
polêmico que governou o Brasil por vinte anos, através de um golpe de
Estado e também por voto direto, influencia até hoje o palco político por
meio das instituições sociais e econômicas que criou. Foi pressionado pela
imprensa e por militares a renunciar por causa do atentado que sofrera o
jornalista opositor, Carlos Lacerda, e o assassinato do Major Rubens Vaz,
quando andavam pela rua Tonelero. Getúlio nunca perdeu a dignidade e
o autodomínio. Talvez o corvo tenha entrado pela janela de seu quarto e
o aconselhado a assinalar a História com um ato trágico. Talvez o pássaro
tivesse pousado sobre a escrivaninha e ditado a ele sua carta-testamento:
“Deixo à sanha de meus inimigos o legado da minha morte.” Tantas eram
as mentiras, as torpes calúnias em torno de um crime que não cometera.
Os corvos do telhado testemunharam tudo, ficaram à espreita, jogando
suas sombras sobre o destino do país.
Meu coração está pesaroso enquanto observo o corvo no umbral
da minha janela.