Agosto, 2023 - Edição 294
Natália Correia: a intervenção literária e política
A criação literária de Natália Correia possui dois componentes fundamentais: o pendor lírico, ao aprofundar os sentimentos mais íntimos, e
a sátira escaldante e corrosiva para ajuste de contas com poetas, escritores,
artistas, políticos e outras pessoas que detestava.
Trinta anos depois da morte e ao comemorar-se a 13 de setembro o
centenário do nascimento, perdura a obra literária de Natália Correia, que
celebrou a vida como expressão de euforia, de afirmação de coragem, de
inconformismo colérico, de rebeldia aparatosa.
Teve enorme repercussão em Portugal. Privou com intelectuais
brasileios não é (ou não foi) ignorada por Carlos Nejar, Alberto da Costa e
Silva, Carlos de Lacerda, Jorge Amado e Zélia Gatai, João Ubaldo Ribeiro.
E, ainda, de Nélida Pinon, Lygia Fagundes Telles, Dário de Castro Alves e
Dinah Silveira Queiroz… Óbviamente por José Mindelin e António Olinto.
Em Portugal, pertencia ao reduzido número de mulheres que basta só
dizer um nome para as identificar na amplitude da sua criação artística
e na singularidade da sua dimensão humana – Natália, Sophia, Vieira (da
Silva), Agustina, Amália.
Nasceu, em 1923, nos Açores, na ilha de São Miguel, na Fajã de
Baixo, uma freguesia do interior, próximo de Ponta Delgada. Pai e mãe
separaram-se quando Natália tinha alguns meses. O pai emigrou para o
Brasil. A mãe de Natália, a professora primária Maria José Oliveira, formara-se no ideário cívico e cultural da Iª República, adotando princípios laicos e tendências libertárias, o que era raro na época e muito mais raro nos
Açores. Além do exercício do magistério, colaborou em jornais e revistas.
Mas, desde sempre, preocupou-se com a educação das filhas, incutindo-
-lhes os valores da democracia e a aproximação com a modernidade.
Radicou-se, em 1934, definitivamente, em Lisboa. Quiz dar às filhas
– para triunfarem na vida – as oportunidades que não existiam nos Açores.
Natália ganhou projeção nos anos 1940. Conciliou o jornalismo, a literatura e a política. Aderiu à oposição democrática; teve programas no Rádio
Clube Português, escreveu em jornais e revistas. Assinou, em 1945, as listas
do MUD (Movimento de Unidade Democrática). Todavia, ao contrário da
maioria dos jovens intelectuais e políticos da sua geração – casos como
Mário Soares, Salgado Zenha – não ingressou no MUD Juvenil, dominado
pelo Partido Comunista.
Os primórdios literários de Natália Correia refletem o neorrealismo,
de raíz marxista e comunista e muito associado a alguns escritores brasileiros integrados no âmbito do regionalismo, nomeadamente, Graciliano
Ramos. O romance de Natália Anoiteceu no Bairro, (1946) e o livro de versos Rio de Nuvens (1947) são dois exemplos.
Demarcou-se, todavia, nos anos 1950, deste movimento literário
e político. Seguiu outro caminho, que prosseguiu com variantes óbvias.
Mergulha no luxo ornamental, no jogo dos paradoxos e na exuberância
do barroco. Passou a ficar próxima do surrealismo. Manteve relações
pessoais e literárias com Mário Cesariny, Cruzeiro Seixas, Alexandre O’Neill,
Manuel de Lima e Mário Henrique Leiria. Acrescente-se Luís Pacheco,
editor dos surrealistas na Contraponto. Lançou três livros de poesia de
Natália, desta segunda fase: Dimensão Encontrada (1957), Passaporte
(1958) e Comunicação (1959). É um repositório de inquietações e de perplexidades.
Já o Canto do País Emerso (1961), livro de apoio à ocupação do
navio Santa Maria, comandada por Henrique Galvão, ao sair do Brasil para
Portugal. Destinava-se a provocar a queda do regime chefiado por Salazar
e do seu Governo. E a acelerar a autodeterminação ou independência de
Angola, Moçambique, Guiné e outros territórios coloniais. Representa o
Canto do País Emerso, no contexto da obra de Natalia Correia, a transição
para o combate politicou outros livros de poesia, de ficção, de teatro, de
ensaio e de crônicas ocasionais em revistas e jornais. Se a identificação
de Natália Correia com Lisboa foi muito intensa, o vínculo com os Açores
foi profundo: “Para Lisboa me trouxeram/ não de uma vez e embarcada: /
minha longa matéria foi/ pouco a pouco transportada. / Recém-vinda de
ficada/em morosa maravilha, / sempre a chegar a Lisboa/ e sempre a ficar
na ilha”. Um dos seus livros mais famosos, Não Percas a Rosa, registra as
reminiscências visuais, auditivas e gustativas que remontavam à infancia
e ao começo da adolescência, na ilha de São Miguel.
Na linhagem medieval das Cantigas de Escárnio e Maldizer, Natália
concebeu as Cantigas de Risadilha. Enfrentou todos os poderes e todos os
convencionalismos. Ficaram célebres os versos para arrasar o deputado do
CDS, João Morgado, quando se pronunciou na Assembleia da República,
acerca da legislação sobre o aborto. Morgado disse categoricamente: “o
ato sexual é para fazer filhos”. Natália, deputada do P S D, não se conteve e
fez, de um jato, um poema que saiu na íntegra no dia seguinte, no Diário
de Lisboa. Natália declamou com a maior ênfase: “Já que o coito – diz
Morgado -/tem como fim cristalino, /preciso e imaculado/fazer menina
ou menino; /e cada vez que o varão/sexual petisco manduca, /temos na
procriação/prova de que houve truca-truca. / Sendo pai só de um rebento,
/lógica é a conclusão/de que o viril instrumento/ só usou – parca ração!-/
uma vez. E se a função/faz o órgão – diz o ditado –/consumada essa exceção, / ficou capado o Morgado!”
Lisboa era a sua cidade adotiva. Juntamente com o marido e a
escultora Isabel Meyrelles, criou, em 1971, uma sociedade para instalar
um bar, restaurante/ café-concerto, no largo da Graça, no rés-do-chão da
Vila Souza, um edifício histórico do bairro. Ficou a chamar-se o Botequim.
Remontava à tradição literária, política e boêmia, dos primeiros cafés de
Lisboa, do século XVIII, do tempo de Bocage e outras figuras que tomaram
parte nos antecedentes da Revolução Liberal, de 1820, e da Independência
do Brasil.
Encontrava-se Natália envolvida, em 1971, em controvérsias políticas e literárias que deram brado em todo o país. Desencadeara no consulado de Salazar e na “primavera marcelista” duas ruidosas polêmicas que
a levaram à barra do Tribunal Plenário de Lisboa. O primeiro processo
motivado pela introdução e coordenação da Antologia da Poesia Erótica e
Satírica (1965). O segundo processo foi devido à responsabilidade editorial
das Novas Cartas Portuguesas (1972), da autoria de Maria Velho da Costa,
Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno. Ambos os livros foram objeto
do alarme da Censura e da imediata apreensão da PIDE (equivalente, no
Brasil, ao DOPS). Foi julgada e condenada, ao cabo de nove anos de guerrilhas judiciais.
O 25 de Abril determinou o ponto final.
Em torno de Natália, o Botequim concentrou, todas as noites,
poetas, escritores e artistas das mais variadas tendências. Políticos de
todos os quadrantes. Deputados, ministros (alguns futuros presidentes
da República). Diplomatas portugueses e estrangeiros. Espiões nacionais
e internacionais para se inteirarem dos bastidores do processo revolucionário e contra revolucionário. E, ainda, representantes da FLAD, o
movimento da independência dos Açores. Durante mais de 20 anos a
irradiação magnética de Natália proporcionou essa atmosfera irrepetível
que Fernando Dacosta recriou no livro O Botequim da Liberdade (2013).
Outra referência obrigatória é a Fotobiografia de Natália Correia (2006), da
autoria de Ana Paula Costa. Recentemente saiu a biografia romanceada de
Filipa Martins, com o título O Dever de Deslumbrar.
Estes e outros aspectos, muitos deles pontuais e efêmeros, vão
se diluindo e esquecendo, na sucessão das gerações e na vertigem da
História. O legado cultural de Natália Correia sobrevive. Celebrou a vida
como expressão de euforia, de afirmação, de coragem pessoal e cívica,
de rebeldia aparatosa, de inconformismo colérico. A sua poesia é sempre
dominada por dois extremos: a confidência lírica e o sarcasco feroz. Uma
Natália ávida de todas as experiências visíveis e invisíveis, em partilha
contínua do profano com o sagrado.