Agosto, 2023 - Edição 294
Café não se troca!
Saulo Ramos era jornalista em Santos, mas jornalista verdadeiramente militante em A Tribuna, o jornal de maior circulação na cidade.
Fazia de tudo, era uma espécie de coringa que a secretaria do jornal
usava para qualquer assunto.
Jânio era prefeito de São Paulo e frequentava o Guarujá, onde o
velho Gabriel, seu pai, tinha uma casa de praia.
Jânio e Saulo se conheceram porque, no Guarujá e nas manhãs de
Sábado, ambos costumavam tomar caipirinha no bar do posto de gasolina do Viola, não tanto pela qualidade da bebida, mas pelos irresistíveis
quibes caseiros feitos pela mãe do Viola, dono do posto e bom de papo
na hora do aperitivo de praia.
Firmou-se a amizade pelos anos que se seguiram, mas a fama de
Jânio afastou-o do bar do Viola. Os encontros entre Jânio e Saulo passaram para as respectivas residências, já que a intimidade o permitia.
Eleito governador de São Paulo, Jânio lembrou-se de uma das
facetas de Saulo, um estudioso da economia cafeeira, na época a maior
fonte de divisas e de riquezas do país. Basta lembrar que o Brasil exportava anualmente 4 bilhões de dólares, dos quais 2 bilhões e 800 milhões
eram gerados pelo café.
Saulo conhecia os problemas do setor; desde a produção – seu
pai era cafeicultor – até a comercialização no Porto de Santos, o maior
exportador do produto, pois o jornalista de A Tribuna teve que aprender
tudo sobre a atividade econômica para escrever com segurança seus
comentários no maior jornal de Santos.
São Paulo, na época o maior estado produtor de café, tinha grande
influência sobre o Governo Federal e impunha as diretrizes econômicas
da política cafeeira. Difícil era conciliar os interesses conflitantes entre
lavoura, comércio e exportação.
Saulo tinha noção segura sobre a forma de harmonizar os conflitos dos setores. Jânio sabia disso. Convidou Saulo, que não aceitou,
a participar do governo estadual como assessor para assuntos do café.
O jornalista estava se formando em Direito, não pretendia envolver-se em política. Mas ficou à disposição do amigo para debater, sempre
que necessário, as questões ligadas à economia cafeeira.
Carvalho Pinto era secretário da Fazenda e promoveu uma reunião com as lideranças da lavoura, comércio e exportação, na presença
do governador, a fim de colher elementos para definir as reivindicações
do governo de São Paulo perante o Governo Federal.
Jânio ouviu atentamente todos os setores. Recolheu atentamente
as exposições de cada setor, enfiou-as numa pasta e disse ao professor
Carvalho Pinto: – Eu mesmo estudo isso.
Duas horas mais tarde, a pasta estava sobre a mesa de Saulo
Ramos, em Santos. E alguns dias depois Jânio reconvocou os líderes e fez
longa exposição sobre qual seria a posição de São Paulo, criticando os
exageros das reivindicações dos cafeicultores, a falta de objetividade das
sugestões dos exportadores e frisando que todos os problemas do café
somente poderiam ser resolvidos através de uma reforma cambial com a
eliminação gradativa do confisco.
Sucesso total, que deixou o professor Carvalho Pinto emudecido
diante dos conhecimentos de Jânio.
Eleito presidente da República, Jânio chamou Saulo ao apartamento de Abreu Sodré, em São Vicente, e disse:
– Agora você vai comigo para Brasília, assessorar-me na política
do café. Não desejo mais ser boneco de ventríloquo.
Saulo aceitou, sob condições: liberdade para escolher o presidente
do Instituto Brasileiro do Café (IBC), total liberdade para o planejamento
da economia cafeeira, sem interferências dos ministros da Fazenda e da
Indústria e Comércio, e reforma cambial para a eliminação do confisco.
O presidente eleito concordou, pois ainda não havia convidado
os ministros mencionados e, quando o fez, Clemente Mariani para a
Fazenda, Arthur Bernardes para Indústria e Comércio, declarou que
a política do café seria conduzida pessoalmente pelo presidente da
República.
Saulo escolheu o ministro (do Itamaraty) Sérgio Armando Frazão
para presidente do IBC, rompendo a velha tradição de entregar autarquia
ora a um fazendeiro de café, ora a um representante dos comerciantes
ou exportadores. Inaugurou a experiência bem-sucedida de considerar
o café como assunto de Política Externa, conduzida com a participação
de diplomata.
Com a reforma cambial pela resolução 204 da Superintendência
da Moeda e do Crédito (Sumoc), Jânio cumpriu a promessa: autorizou a
edição da resolução 205, também da Sumoc, redigida por Saulo, Frazão
e Octávio Bulhões, então presidente da Superintendência da Moeda e do
Crédito.
Foi assim, extinto o confisco cambial sobre as exportações do
café e criada a quota de contribuição, destinada a ser gradualmente
eliminada, embora seus rendimentos fossem exclusivamente investidos
na economia cafeeira. Com a renúncia de Jânio, a eliminação gradual da
quota de contribuição foi abandonada pelos governos que se seguiram e
transformou-se, ela própria, em novo confisco cambial.
Embora o Brasil, em 1961, estivesse com perigosa superprodução
de café (40 milhões de sacas), a dupla Saulo-Frazão conduziu uma política que deu excelentes resultados, mas exigiu um trabalho indescritível.
Com a execução desta política, o governo de Jânio conseguiu
exportar cerca de 18 milhões de sacas e aumentar sensivelmente a receita de divisas com a exportação de café. Nos sete meses de governo Jânio,
o PIB cresceu 9,2%, graças aos recursos irrigados internamente pelo café
exportado.
Um belo dia surgiu, no Planalto, um deputado paulista da então
UDN propondo a Jânio um negócio fabuloso para o país... A Espanha
pretendia trocar alguns milhões de sacos de café por navios, de fabricação espanhola – oferta que fascinou os governadores do Nordeste.
Pressionado e fascinado pela operação, Jânio pediu a Saulo parecer sobre a proposta. O parecer foi contrário. O bate-boca foi histórico:
– Desencalhamos milhões de sacos de café de nossos custosos
estoques, recebemos navios de que necessitamos demais e você diz que
não pode! Por acaso você pegou o vírus dos burocratas? – disse Jânio aos
gritos.
– A Espanha consome duzentas mil sacas de café por ano. Não
vamos esperar que ela seja boazinha de estocar, por nós, alguns milhões
de sacas para consumir ao longo dos próximos anos. A estocagem é
cara e o café perecível, envelhece. Logo a Espanha vai revender o café
que receber e com o abatimento do preço. O resultado será catastrófico,
porque provocará uma queda no mercado internacional e atingirá, por
óbvio, toda a nossa exportação. Café não se troca; vende-se.
Jânio não se conformou. Disse que faria a operação, que obrigaria
os espanhóis a assumirem o compromisso de não revenderem e, se acaso
o fizessem, os preços teriam de obedecer às cotações internacionais.
Desfilou uma série de ingenuidades que os intermediários do
negócio haviam enfiado em sua cabeça. E disse que autorizaria a operação, a despeito do parecer contrário.
– Se Vossa Excelência autorizar a operação, terá que deferir o meu
pedido de exoneração no mesmo dia – disse Saulo.
– Pois defiro-o antes. Apresente o pedido a Chico Quintanilha e
peça-lhe para despachar comigo tão logo eu voltar da reunião de governadores do Nordeste, para onde vou hoje. Passe bem.
Saulo saiu do gabinete presidencial e redigiu o pedido de demissão. Jânio foi para o Nordeste para uma de suas célebres reuniões com
governadores, às quais levava o Ministério, deslocava a sede do governo,
fazia espetaculares movimentações. E na pauta desta reunião estava a
reivindicação dos governadores nordestinos interessados na operação
espanhola, que lhes daria os cobiçados navios de cabotagem.
Saulo entregou o pedido de demissão ao chefe da Casa Civil,
Francisco Quintanilha, que sorriu e comentou:
– Até parece que você não conhece o Jânio. Pode levar de volta
este pedido, antes que algum jornalista tome conhecimento. Espere o
homem voltar do Nordeste.
No dia seguinte, Saulo encontrou sobre sua mesa um bilhete de
Quintanilha (era o governo dos bilhetinhos) com o exemplar de um
jornal do Nordeste, que estampava na manchete: JÂNIO: CAFÉ NÃO SE
TROCA!
No texto da notícia vinha toda a observação do parecer de Saulo,
com enérgicas advertências.
Ao voltar do Nordeste, dia seguinte cedo, Jânio dirigiu-se para a
sala de Saulo, no Planalto. Abriu a porta e o amigo, que estava estudando
alguns processos, levantou-se:
– Saulo, meu bem, leu os jornais do Nordeste?
– Li.
– Gostou?
– Claro.
– Que gente maluca! O deputado, aquele (¹), voltou no meu avião
inconformado, metendo o pau em você. Creio que ele deixou de ganhar
uma gorda corretagem. Se era pelo café, amargou; se era pelos navios,
naufragou. Essa gente não tem o menor espírito público. Venha ao meu
gabinete. Vamos trabalhar.
(1) O deputado era Herbert Levy, da UDN de São Paulo, e que, a
partir de então, passou a odiar Jânio e Saulo.