Agosto, 2023 - Edição 294
Muito sal, pouca luz
“Está bom, mas está com muito sal”. Foi a única frase que meu marido pronunciou durante o almoço. O restante do tempo, ele revezou entre o silêncio apático
e o olhar interessado nas mensagens que chegavam em seu telefone.
Eu já devia ter tomado uma decisão. Não é de hoje que sei que ele se alimenta de outras histórias. Eu relevei com receio das crianças, quando eram crianças.
Hoje, nossos filhos estão casados. Moramos apenas nós dois. Eu não dependo dele
para nada. Ganho, inclusive, mais do que ele.
Sou decidida na empresa que dirijo. Sou objetiva na tomada de decisões
e na dispensa do que não contribuiu para as metas do meu negócio. Com ele, sou
vagarosa. Vez em quando, pergunto a mim mesma a razão. Comodismo? Receio de
começar uma outra história? Medo de não ter ninguém? Será que tenho alguém?
Será que fiz certo ao permanecer pela felicidade dos meus filhos? Ou será que
inventei, para mim mesma, que era por causa dos meus filhos?
Saí sozinha depois de ajeitar as coisas na cozinha. Ele nunca pergunta onde
eu vou. Melhor. Saí andando sem grandes decisões. O dia estava cortado por um
calor incomodativo. Eu estava mais uma vez cortada e repetindo, a mim mesma, a
frase do “muito sal”. Nem um elogio. Nem um olhar para o vestido novo. Nem um
dizer romântico. Eu sei que estou bem fisicamente. Cuido de mim com prazer, com
o prazer dos meus sessenta anos.
Entro em um cinema. Não há ninguém no cinema. O que me traz uma sensação dúbia. Uma, a de que é tudo para mim, a sala inteira. Outra, a de que estou
sozinha. Inegavelmente sozinha. A pouca luz do cinema e a ausência de qualquer
outra vida fazem minha vida pensar. O filme toca a solidão em mim. A música. Os
diálogos. O desfecho.
Onde mora a coragem mesmo? Por que permanecer em uma história de
amor sem amor? Falamos nada um ao outro. E não sou das que culpam o tempo.
Conheço casais que reinventam a forma de estar, mas estão. Que apalpam a cumplicidade, que desligam outros interesses para prosseguir interessado em quem
dorme ao lado.
Sou uma mulher apaixonada pelo que faço. Gosto de gostar das pessoas.
Gosto de dizer das delicadezas que perfumam os meus dias e das quenturas nas
escolhas necessárias do exercício do meu poder. E o poder sobre mim? Quando vou
aprender a exercer?
Uma amiga me diz para fazer o mesmo, para providenciar amantes. Eu ouço
e demito a ideia. Não seria eu. Sou compositora de enredos de amor. Não sou do
físico sem laços imateriais. É a alma que me preenche. Foi assim nos namorados de
antes. Foi assim nos nossos inícios. E, se um dia eu puder abrir um novo caderno
para escrever uma nova história, terá que ser também assim, com amor.
Amo amar. Amo sentir os sentimentos multicores que pintam de sorrisos os
meus dias. Amo arrumar a minha casa para que seja frequentada. Com doçura. O
riso sem riso, a conversa sem conversa, o silêncio sem silêncio são comportamentos
que não comportam uma história de amor. Cultivo a inteireza dos instantes e ouço a
voz dos que falam comigo. Jamais desligo histórias bonitas que me contam.
Já quase nada conto ao meu marido. Sempre tão distante. Quando se aproxima, é para dizer do excesso do sal. O cinema me inspira a responder da pouca luz.
Vou conseguir retirar o véu do medo do novo para permitir ao meu riso que ria com
quem quer rir comigo, que converse com quem gosta das minhas conversas e que,
inclusive, ache interessante algumas rugas que me emprestam a sabedoria dos tempos para ter histórias para contar. O filme está chegando ao fim. O meu, também.
O vestido que ele não reparou vou prosseguir usando. E, os medos de recomeços, vou conseguir enfrentar. Ainda quero, antes do meu entardecer, beijar um
homem no fim de um dia, num cenário nosso. Ainda quero desdizer a mim mesma,
quando manda permanecer. Talvez eu tenha salgado demais a comida pela falta de
sabor.
A pouca luz do cinema me lembra de que tenho o poder de iluminar. Não
nasci para comer comida morna. Nem para jejuns de palavras carinhosas. Nasci
para abrigar a quentura dos corpos que se encontram e das almas que se beijam.
Nasci para nutrir um amor verdadeiro que não precise de outras lamparinas para
acender sua luz. Que me ame no amanhecer ou na penumbra e que não brinque
de desatenção.
Depois que conseguir começar, conto o que aconteceu.