Agosto, 2023 - Edição 294

Escorpiano

Chovia muito naquela noite. Rando Merla dirigia com cuidado, olhava os retrovisores, a sua esquerda, a sua direita, a coluna de carros que seguia atrás obedecendo o limite de velocidade, sem nenhuma transgressão, exatamente como seu Mapa previra. Pensou em baixar os olhos e olhar para o Mapa impresso, aberto no banco vazio ao seu lado. Era melhor esperar chegar no Rio. Seguir a métrica do cálculo astrológico havia sido um passo fundamental; uma vez dado, pudera notar como sua vida se modificara.

Escorpiano, Merla conseguira demonstrar as falácias que costumam tornar desagradáveis os nativos de sua referência no Zodíaco. Usava o Ciclo Trigonométrico em palestras, abrindo o Mapa no Primeiro Quadrante, quando a Lua, em movimento no sentido anti-horário, formava o seno de 90 graus e alcançava o Primo, o Uno, o único múltiplo de todos os números, da Cabala aos Vedas, passando pelos Kodhekriabras da Índia.

Sua vida, que mudara tanto, ainda conheceria um novo momento de despertar, naquela noite chuvosa na Ponte. É que, na altura do vão central, após afastar o pensamento, limpá-lo da tentação de olhar o Mapa, percebe alguma coisa estranha no fluxo de tráfego, na monotonia obediente, linear, sempre presente nessas circunstâncias. A luz bruxuleante pela chuva, combinada à ação do limpador de para-brisa, recortava a Ponte lá fora em imagens sincopadas e, numa delas, debruçando-se sobre a mureta, Rando viu o pacote. Restava que a moto abandonada, jogada na pista, indicava um ser que deveria ser de luz às trevas em voo de precipício à Baía da Guanabara. Na mureta da Ponte, o pacote não pensava no medo, olhava a imensidão do mundo que se abria para o voo final de uma vida atormentada, cheia de dívidas, o aluguel atrasado, a mãe esclerosada engatinhando pela casa e urinando com a perna levantada no pé da mesa da sala na frente dos netos.

Como a chuva aumentava a intensidade e porque a manobra até à mureta exigia cuidado, Rando Merla liga a seta, o alerta em seguida indicando que vai parar, passa devagar pela moto deitada na pista. Espírito benfazejo, Tigre Chinês, Ascendente Lunar em emulação simultânea. Nos traços do Mapa, existem muitos pontos de pequenos triângulos equiláteros que confundem – e confundem não apenas o leigo, mas também o próprio Iniciado, conhecedor do Cálculo, no esforço de fazer associações que revelem o mistério do dia, no caso, da noite, noite chuvosa na Ponte onde Merla não está em vão, pronto ao exercício da Profundidade, cuja intensidade é tão maior quanto avulta a característica em um Escorpiano, como ele, Rando Merla.

Agarra-se à predição de seu Mapa com toda a força do Signo que encarna e desce do carro andando para o homem fechado em si mesmo, pacote encharcado sobre a mureta, imóvel.

O homem parece perturbar-se, olha para Merla como uma aparição. Não tem certeza se boa ou se má. Merla, tranquilo, oferece-lhe a mão: “Tudo bem, amigo?”
Eram olhos, de fato, amigos ao homem pacote, embrulhado, encharcado, pendendo sobre a escuridão que absorvia Ponte, noite e Baía.
“Aqui seria um bom lugar para alçar voo, se Ícaro fosse carioca, não acha, amigo?”
A surpresa do homem pacote foi de tal sorte que levantou o corpo, desembrulhando-se. “Amigo, pensando bem, hoje, aqui na Ponte, debaixo desse temporal, seria o último lugar que Ícaro estaria pra voar, não acha, amigo?” Após o estímulo inicial, o homem desinteressou-se, voltou-se para a escuridão. O serviço da Ponte chegava junto com uma van dos bombeiros. O homem senta na mureta. A situação piora com o sudoeste varrendo o vão central, balançando todos. A perseverança escorpiana resumia Rando Merla. Aliás, era a ferramenta destacada pelo seu Mapa Astral para uso naquela noite.

A equipe da Ponte já iniciava os procedimentos, afastando Merla. “Meus amigos, sei do protocolo, mas, creio que todos aqui acreditamos na Mãe Natureza. Ela opera muitas vezes sem sentido para os nossos sentidos limitados, restritos ao que vemos, ouvimos, comemos e bebemos. A propósito, quanto pão que o Diabo amassou e fel destilado em água nada benta este nosso amigo ali, à espera de um sinal maléfico que sempre vem, não digeriu em anos que amargurou e verteu em contrição em vão que pretendeu a um ponto, a ponto de pegar da sua moto, largá-la na pista e sentar na mureta? Deixem-me ajudá-lo?”
A peroração funcionou, e num átimo também a chuva estancou. A Ponte, agora, plataforma: em vez de lançar o infeliz, Ícaro descia à mureta e, à medida em que suas asas de cera ficavam molhadas, lavava a Ponte, secava, de vez, a chuva e amanhecia a noite com azul que desautorizava a morte, qualquer morte, da mureta, portanto, do homem pacote.

Ícaro levaria a angústia, o medo, os prejuízos em suas asas – podia ler Rando Merla de seus triângulos do Mapa. O homem pacote fala:
“Rando Merla, isso?”
“Isso.”
“Minha mãe caiu de cama de um dia pro outro. Passou a não falar mais coisa com coisa. No seguinte, desceu da cama, engatinhou até o banheiro, parou no meio da sala e, então...”
O homem que se desempacotava hesitou entre o silêncio que não merecia e a exposição que não deveria.
Um bom escorpiano não desperdiça a paciência. A fama de impaciente não viria se conhecessem melhor os Astros, a Cosmogonia, a Paralaxe. “Fale, meu amigo, desopile seu fígado.”
“Minha mãe atravessou a sala, estancou, de repente, levantou a perna no pé da mesa. Meu filho, que é acumulador, se jogou no chão pra salvar o pacote de jornal do ano passado. Temia pelos efeitos sobre o papel velho da acidez da urina da avó.”
Ícaro, bombeiros, equipe da Ponte, emocionados. O Mapa Astral dobrado sob o braço esquerdo de Merla. Em paz, afinal, volta para o carro.

Por Antônio Máximo