Julho, 2023 - Edição 293

Fazer rir é uma arte

Fazer rir é uma arte que alguns escritores sabem bem manejar por excelência. O humor é diferente da ironia. Aproxima as pessoas, materializa-se e estimula movimentos em quem o recebe com uma carga de efeitos paralinguísticos, e faz jorrar o riso. Enquanto a ironia, não diz literalmente o que pretende, deixa parecer ser outra coisa, contém um teor de intelectualidade crítica, distancia as pessoas com uma carga de sarcasmo e não provoca a gargalhada. Para a maior parte das pessoas, o escritor humorístico é o que faz rir. Ele é o cômico, o satírico, o grotesco que se opõe ao sublime, ao ideal, mas a técnica do humor não anula o trágico.

Freud (1981) apresenta várias definições sobre a comicidade, em seu ensaio sobre o chiste (piada), apontando que esse tem tendências inconscientes e reforçadas, faz aparecer um sentido escondido, um caráter brincalhão, um contraste de representação, um descobrimento de alguma oculta acepção. Mas há inibição, uma espécie de defesa psíquica, para evitar um desprazer.

Bakhtin (1981), ao examinar a carnavalização em obras do segundo período de produção literária de Dostoievski, encontra forte o elemento cômico e define o riso como uma posição estética. Essa é a razão de cada época e cada povo possuir seu próprio e específico sentido do humor e a tradução do cômico de um idioma para outro perder o seu vigor, porque muda a sociedade receptora e onde um ri outro pode não rir. É uma questão de ordem histórica, social, nacional e até pessoal.

O riso é fácil quando com rudeza brincalhona suja-se uma figura, violentando-a, ridicularizando-a. Ele aparece por semelhança, uma coisa parece ser outra, como as máscaras do baile de Carnaval. A imagem dupla não diz a mesma coisa, mas o diferente. A obra mais conhecida de Miguel de Cervantes, Don Quijote de la Mancha, possui recursos de ironia e comicidade, como a luta que o cavaleiro enfrenta com o Moinho de Vento (Cap IX). Nessa aventura há ironia, porque nega a realidade do mundo. Mas a loucura de o herói enfrentar um moinho como se fosse a um gigante tem algo de trágico em sua comicidade. O combate é desastrado. É uma espécie de paródia da Batalha de Lepanto, algo “espantável e jamais imaginado”, como comenta D. Quixote: “boa guerra e grande serviço a Deus arranca má semente.”

A paródia é um dos instrumentos poderosos da sátira social. Ela está ligada ao exagero cômico e ao desnudamento de um defeito. Segundo Bergson (1978), a arte do caricaturesco capta um detalhe, às vezes imperceptível, e o evidencia. Sem dúvida, o grau mais extremo do exagero é o grotesco, que traz em si uma grande carga do trágico, porque o cômico é, ao mesmo tempo, trágico. Por essa razão, a frustração do insucesso de D. Quixote na investida contra o gigante é cômica pelo exagero e disparate de sua ação, mas nem toda frustração é cômica. As iniciativas grandes ou heroicas naufragadas não são cômicas, mas trágicas. Nem toda comicidade é triste ou angaria simpatia. Se os reveses de um homem, na representação de Chaplin, quando foge de um burro e entra na jaula de um leão, ou as aventuras malogradas de D. Quixote, trazem o riso, é porque neles existe uma grandeza humana e a sinceridade de suas ações. Ao contrário, as personagens não ocasionam simpatia e não transmitem pena se representam impulsos e tendências egoístas e mesquinhas, pois a mediocridade da pessoa impulsiona um caráter de punição, como a figura do avaro Harpagon ou do hipócrita Tartufe de Molière. O riso que nos provoca D. Quixote ou Chaplin não é resultado do malogro, mas da disposição interrompida de acabar com gigantes em um e de tentar sair da jaula no outro, além disso, não se culpa uma pessoa por seus reveses, mas se sente dela pena.

Na literatura satírica e humorística, o ato de fazer alguém de bobo é comum, um exemplo são as ações de Grilo no Auto da Compadecida de Suassuna. É um procedimento que domina no teatro popular, no teatro circense, no mamulengo, no teatro de boneco e na “Comedia del arte”: nas figuras de Pierrô, Colombina e Arlequim. Desse artifício, empregaram Shakespeare em suas comédias e Cervantes nos entremeses. Muitas fábulas se aproveitam do engano para doutrinar. Um exemplo é a da raposa astuciosa e o corvo egoísta e vaidoso. Logo, a mentira enganosa é cômica, desde que não se deixe levar por consequências trágicas. Ela deve ser sempre desmascarada, isto é, deve ser revelada.

Considera-se Don Quixote louco, porque só aspira a justiça de dar proteção aos debilitados e humilhar os poderosos. Mas é um lutador pacífico. A sátira está em que ele é ridículo, mas é heroico no seu grotesco. É por essa união do trágico e do cômico que o riso não sai livremente, porque deixa uma sensação de pena. A negação do positivo é a essência do trágico e do cômico e a linha que os separa é tênue. A comicidade ingênua surge quando ela nos apresenta como justo, bom, e sensato. O cômico assinala o vício e o exagero de cânones. Por isso são cômicas não só as situações que nos apresentam os bêbados com a inversão de valor, como também as atitudes de desrespeito em que se ridicularizam as instituições. Toda insubmissão a tudo o que é colocado no alto nível hierárquico-celestial, demoníaco-terrestre ou a qualquer entidade provoca o riso pela insubordinação e as situações absurdas. Haja vista a cena em O Auto da Compadecida, quando Manuel diz à Virgem: “Se a Senhora continuar a interceder desse jeito por todos, o inferno vai terminar como disse Murilo, feito repartição pública, que existe e não funciona.” Bergson (1978), ao teorizar o riso, falando sobre o cômico em geral, sobre a comicidade das formas e movimentos, mostra que o risível está em certa rigidez mecânica ali onde deveria haver maleabilidade, flexibilidade e repetição. Um exemplo é a cena da taberna em D. Quixote (Cap XVI), quando Sancho é agredido pelo tropeiro e este agride Maritorne sobre a qual o taberneiro recai. As cenas que nos apresentaram os Trapalhões e os Três Patetas estão carregadas dessas situações absurdas.

Por fim, um grande instrumento de comicidade e zombaria oferece a língua em impropriedade de uso em mãos de um hábil escritor, como Cervantes, quando coloca os conselhos de Sancho Panza e refrões proferidos em horas e discursos impróprios e nas inversões de valores, ou quando fala com seu asno como se ele fosse humano.

Referências

BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1981.
BERGSON, H. O riso. Ensaio sobre a significação do cômico. 2.
ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1978.
CERVANTES Miguel de. D. Quixote de la Mancha. Madrid, Espasa Calpe, 1956.
FREUD, S. “El chiste y su relación con el inconsciente”. Obras completas. Madrid: Ed. Biblioteca, 1981, v.1

Por Ester Abreu Vieira de Oliveira, membro do PPGL/Ufes, presidente da Academia Espírito-santense de Letras, da Academia Feminina Espírito-santense de Letras, ACLAPTCTC – Academia Capixaba de Letras e Artes de Poetas Trovadores, Academia de Letras do Brasil e do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo.