Julho, 2023 - Edição 293
A arte de escrever um grande romance
A leitura de A arte de Driblar Destinos, de Celso Costa,
recém-lançado em Portugal e obra vencedora o Prémio LeYA 2022,
conduziu-me a fazer uma analogia com o que defendeu Vladimir
Maiakovski a respeito da criação poética, e considero perfeitamente aplicável à prosa do autor: “Eu/ à poesia/ só permito uma
forma:/ concisão,/ precisão das fórmulas/ matemáticas.”
Não há como desvincular o espectro do romance a esse
enunciado, até mesmo por conta de uma coincidência que remete
à confecção do texto dentro de parâmetros em que a clareza e a
objetividade são imprescindíveis, tal qual nas ciências exatas: estamos diante de um autor que é matemático, exercendo seu ofício na
UFF (Rio de Janeiro), com mestrado e doutorado e passagens por
universidades internacionais como Chambéry e Grenoble e investigador científico dos mistérios das equações.
Sendo seu segundo livro, que se seguiu à sua estreia em A
Vida Misteriosa dos Matemáticos (Ed. Kazuá, SP, 2018), A Arte de
Driblar Destinos registra a sua incursão pelo território ficcional
com pé direito e habilidade de veterano, chancelado por um prestigiado prêmio internacional, o que, sem dúvida, vai catapultá-lo
a novos horizontes e perspectivas editoriais. Nesse sentido, ao
homologar a premiação, o júri foi unânime em reconhecer uma voz
particularíssima que, ao percorrer uma saga familiar, “reflete muito
bem; com ritmo e vivacidade; o mundo social do interior do Brasil”.
Contar uma história é a atividade mais generosa que um
homem pode exercer, já o disse Eça de Queiroz, no entanto, o saber
contá-la – seja uma história banal e corriqueira ou uma fábula em
que a polifonia de vozes ou a densidade temática se insinuam no
enredo – é o que realmente importa na perspectiva estética que
toda obra deve contemplar, o privilégio da linguagem, pois só ela
inscreve o texto no estatudo das grandes narrativas, hierarquizando a experiência criativa de um escritor.
Celso Costa assumiu com inegável perícia essa consciência
de não apenas contar uma história, a qual, à moda dos “causos”,
há em abundância numa literatura requentada e muito em voga,
mas ultrapassou a fronteira do que comumente se configura como
mera crônica da vida de pessoas e lugares, para inserir-se verdadeiramente numa outra e elevada categoria, a de um bildungsroman,
o romance de formação. Não somente porque enveredou-se por
criar uma trama que acompanha os processos de crescimento,
amadurecimento físico, moral e psicológico de um personagem,
mas por emprestar à sua escrita o amálgama essencial e harmônico entre forma e conteúdo, estruturando-a sob o influxo de uma
carga poética e procedimentos metafóricos que a enriquecem e
envolvem o leitor.
Pelo olhar percuciente, clínico e reflexivo de um menino, o
percurso de uma família no interior do Paraná vai sendo esmiuçado, mergulhando em sua trajetória de percalços, na exumação de
um passado, cujos acontecimentos vão marcar a vida de cada um,
ao mesmo tempo em que funciona como gatilho para que esse
protagonista mirim, com seu precoce senso reflexivo, construa sua
própria sobrevivência em meio a instabilidade funcional e econômica e aos períodos de caos e vacas magras, uma constante em sua
casa, atravessando-os na boleia de seu sonho de ser professor e
emulando intimamente sua arte de driblar aquele destino imposto
pelas circunstâncias domésticas e as contingências sociais.
Ao passo que se penetra no vórtice da história que, ao fim
e ao cabo, consiste num caleidoscópio de situações que vão se
enfeixando, nos moldes de Vidas secas, de Graciliano Ramos, o
autor forma um imenso painel de um outro sertão, porém mais
emocional e psicológico que o territorial e agreste castigado pela
natureza daqueles viventes premidos pela estiagem nordestina.
É que o espaço que projeta está inserido numa realidade em que
pesam mais os confrontos com distintas tensões e questões ligadas
ao trabalho rural, à realização social num mundo mais urbanizado
e que projeta ambições de ascensão, às relações afetivas conturbadas por perdas e dilemas, ao acesso à educação e às perspectivas
de uma cultura e de uma economia que fornecem outros modelos
de sobrevivência e convívio.
A fluência e cristalinidade da prosa de Celso Costa vêm
acompanhada de uma rara empatia com aquilo que afeta o individual e o coletivo, ao capturar os cenários, descrever não apenas
detalhes e objetos, mas os sentimentos e as sensações que estão
retidos num certo e simbólico imaginário, quando o real e o onírio,
a memória e a invenção, fundem-se em rara e plástica simbiose.
Algo que só é possível trabalhar literariamente quando se tem não
apenas o seguro domínio dos artifícios da linguagem e manejo dos
recursos que permitem comunicá-la com eficácia, mas quando
autor e personagens, narrador e protagonistas, são flechados pela
mesma cumplicidade com o universo e a atmosfera repletos de
referenciais, como é o caso desse autor que os aborda com intensidade poética e com a destreza de quem conhece a fundo o seu
ofício e a alma do lugar e de seus habitantes, extraindo-lhe o que
há de mais universal e humano.
Celso Costa construiu uma obra pungente e de fôlego, porém
delicada e comovente, emoldurada por um estilo sutil que bebe na
fonte dos grandes estilistas da língua portuguesa, realizando plenamente o que prescreveu Juan José Saer em Cicatrizes: “há três
coisas que têm realidade na literatura: a consciência, a linguagem
e a forma. A literatura dá forma, através da linguagem, a momentos
particulares da consciência. É tudo. A única forma possível é a narração, porque a substância da consciência é o tempo.
Excerto:
“Ao escutar aquilo senti um solavanco por dentro, meu destino sendo decidido. Eu não queria mudar. Não queria perder meus amigos, viver longe do Barril e da turminha. Eu adorava a escola, levava para casa uns livros coloridos da biblioteca, e minha rapidez nas contas de cabeça, quando respondia até sobre divisão com dois números na chave, tinha sido elogiada pela professora. Ser um futuro professor era uma das coisas que já me surgia como destino e adulto, tinha desistido de ser chofer de caminhão.” >