Junho, 2023 - Edição 292
Modiano e a busca de identidades obscuras
Dentre os grandes prêmios literários, o Nobel mantém indiscutível prestígio. Atribuído pela primeira vez em 1901, ganhou
um autor francês, o poeta e ensaísta Sully Prudhomme. Na última
edição, de 2022, ganhou igualmente uma autora francesa, a romancista Annie Ernaux. Nesses cento e vinte anos de concessão do
prêmio, em que foram distinguidos cento e dezenove indivíduos,
autores francófonos foram os mais laureados, arrebatando dezesseis deles.
Outros, que não aritméticos, são os critérios que norteiam a
escolha. O fato é que, tendo-se Jean-Paul Sartre recusado a receber o
galardão em 1964 (prática que Sartre adotava com relação a premiações em geral), um autor francófono somente voltaria a ser distinguido em 1985: Claude Simon, nascido em Madagascar. O século XX se
encerraria vendo outro francófono premiado pela Academia Sueca:
o prêmio de 2000 arrebatou-o o chinês de nascimento Gao Xingjian.
Entre o romancista e ensaísta Jean-Marie Le Clezio, que se seguiu a
Xingjian em 2008, e Ernaux, a atual detentora, somente outro autor
francófono seria contemplado: Patrick Modiano, em 2014.
Modiano nasceu em julho de 1945, logo após o fim da
Segunda Guerra Mundial, tão devastadora para a França. As
memórias de guerra marcam fortemente a sua obra ficcional, o
que registrou a Academia Sueca ao justificar a atribuição. Como
sempre acontece, a partir daí Modiano passou a ser (ainda) mais
lido e publicado.
Em 1997, publicara Dora Bruder, livro dificilmente enquadrável do alto do rigorismo com que se costuma classificar gêneros
literários. É Modiano às voltas com a ocupação nazista da França,
conduzindo o narrador a uma busca. O ponto de partida, um
anúncio de jornal; a pessoa procurada, uma menina, perdida dos
pais naqueles anos obscuros. O narrador fareja pistas. Um detetive,
um repórter investigativo, seguindo meio obcecado o fio condutor
da história que depois pretendeu contar. Um ambiente, o literário,
mórbido. Mesmo tendo Paris como início da busca, os recantos de
Paris. Até Auschwitz.
Refletindo sobre o livro, tive ocasião de registrar que “a história às vezes contempla anônimos. A família Bruder, por meio de
um anúncio de jornal postado no último dia do ano de 1941, faz
lembrar todas as famílias que naqueles dias se viram dilaceradas,
em nome de não se sabe o quê. Como Anne Frank, Dora Bruder
evoca essa passagem. Mas, ao contrário daquela, sua voz não se
ouve”. E, se me permitem prosseguir: “É a escrita de Modiano que
a resgata para a vida. A vida das personagens literárias, que seja.
Porque a pessoa de Dora Bruder, a menina de carne e osso, inocente e impotente, viu-se tragada pela estupidez. Como tantas e tantas
outras pessoas, de que não nos ficaram o nome.”
Memória e ficção são as ferramentas de Patrick Modiano.
Com que sai à busca da identidade do outro, de conhecer alguém.
O que se vê também, por exemplo, em No Café da Juventude
Perdida, de 2007. Neste último, impressões de quatro narradores
sobre sua relação pessoal com a misteriosa Louki, filha de uma
empregada do Moulin Rouge. Memória e identidade – em ambos
os casos, de personagens anônimas, de vidas quase que à margem
do registro oficial. Que fica muito bem à Literatura eternizar e
galardoar.