Junho, 2023 - Edição 292
Lamentações

O que me faz chorar? De onde vem essa necessidade de
exprimir por meio de lamentos o que está preso na minha alma? De
me derramar em desespero esta noite, as lágrimas correndo como
ribeiros pelo meu rosto?
Jeremias (650a.C.-587a.C.) lamentou-se tanto diante de
Jerusalém conquistada pela Babilônia do rei Nabucodonosor. A
queda, o fim de um reino. O povo levado escravo para o cativeiro. Ficou conhecido como profeta chorão, que constatou as suas
visões referentes à destruição da cidade serem cumpridas. Por
dizer a verdade, foi espancado, aprisionado numa gaiola, teve sua
vida constantemente ameaçada, mas se manteve como coluna de
ferro em meio à adversidade e oposição. Sofreu desgaste emocional das muitas batalhas. Angustiado, deprimido, acabou jogado
num poço lamacento. Um dia, desapareceu misteriosamente no
deserto do Egito.
Também tenho reações de pesar quando vejo a destruição
de São Paulo: os túneis cheios de mendigos e barracas de lona
preta; crianças que pedem pão a cada esquina, desfalecendo nas
ruas; malabaristas brincando com fogo nos semáforos; órfãos de
pai e mãe, que já não existem, que se perderam nas drogas, que
vagam como zumbis pelas vielas sujas e se encostam cansados
nas estátuas de bronze; jovens que deixaram a música, a dança e
os estudos e vendem seus corpos na sarjeta; mulheres estupradas
com violência; homens enforcados nas árvores; velhos que não
são mais reverenciados e abarrotam os asilos; as lojas lúgubres do
Bom Retiro com seus manequins fantasmagóricos; lixo transbordando pelas calçadas; os palacetes decadentes cobertos de pichações. Por todo lado, sente-se a infestação de morcegos. Há trilhas
por onde vêm raposas. Por estas coisas eu ando chorando. Minhas
entranhas estão se consumindo. Envelheço na minha carne e
meus ossos se quebraram. A cada dia perece a minha força. Meu
pranto é de absinto e fel. Dei milhares de vezes a face àqueles que
me perseguem. Estou farta de afrontas. Aqui me separei de quem
jamais gostaria de ter me separado. Choro e lamento por todos,
pela cidade, por meus filhos e por mim mesma. Queixo-me de
mim quando esquadrinho meu coração do alto deste viaduto.
Cassiano Ricardo (1895-1974), o poeta paulista, representante do modernismo, escreveu Jeremias Sem-Chorar (assim
mesmo, com hífen). Criou um Jeremias integrado no mundo
cibernético, eletrônico, astronáutico, planetário da era cósmica,
impedido de chorar. Jeremias não chora por sete razões que ele
expõe logo no começo do poema, mas se incorpora no desespero
lúcido da ciência, da tecnologia. Um Jeremias aterrorizado e o
aterrorizado não chora, assim como um náufrago não precisa
chorar, pois é chorado por asfixia. Um Jeremias que confessa ter
que percorrer o mundo e tudo ver sem chorar. Assistir impassível
à guerra nuclear e à degolação de inocentes sem chorar. Sem uma
única lágrima. Declara: “Lágrima?/ Coisa íntima e ínfima/ diante
do espetáculo.” Conclui que quem não chora, afinal, é apenas um
pássaro que não canta.
Talvez haja esperança. Aguardo quieta, gemendo em silêncio, que cesse a fúria do vento. Que parem nas órbitas as meninas
dos meus olhos. Que um feixe fino de luz, o farol de um carro talvez, se projete nessas trevas.