Junho, 2023 - Edição 292
Espelho das metamorfoses de um país
Em seu novo romance, Querida Cidade (Ed. Teodolito,
Lisboa, 2023), que surge após um interregno de quinze anos sem
publicar, cuja edição portuguesa foi lançada em fevereiro em
Póvoa de Varzim, no evento internacional Correntes D’Escritas
com a presença do autor, Antônio Torres dá continuidade a uma
cartografia peculiar dos sertões geográficos e psicológicos e do
seu interior territorial e emocional a partir de sua ancestral Junco,
atual Sátiro Dias. Instância real e ao mesmo tempo mitológica de
suas escrevivências, daí recolhe matéria para uma escritura que
vem marcando a literatura brasileira, sobretudo por retratar as os
movimentos migratórios e os choques por eles provocados na vida
de seus personagens.
Eis uma obra densamente povoada de emoção criativa,
intensidade semântica e linguagem poética, na qual percebe-se
um puzzle narrativo a partir do núcleo temático dos deslocamentos que têm caracterizado sua vasta bibliografia. As histórias
albergadas em seus romances e contos (entre os quais destacamos
os antológicos Essa Terra, Um táxi para Viena D’Austria, Um Cão
Uivando para a Lua, Meu Querido Canibal, O Cachorro e o Lobo,Carta ao bispo) constituem o repositório dessa realidade tantas
vezes cáustica e desafiadora, da qual não conseguem fugir as
personagens, tantas vezes fragilizadas pela compulsoriedade de
seus destinos, mas que por isso mesmo traduzem a sua dimensão
essencial e humana.
É a partir da conversa com a mãe sobre o sumiço do pai que
o gatilho da memória é deflagrado e deslinda-se o fio do romance,
ao tentar desatar os nós de um passado pouco esclarecido e confuso para o filho. Ao sair de seu pequeno burgo nos idos de 1950, o
protagonista – um menino de dez anos que sonha em descortinar
mistérios e paragens – vai viver com um tio noutra cidade, na esperança de galgar escalas na vida, tendo o parente como exemplo de
ascensão social. Esse sonho é interrompido pelo desaparecimento
do seu novo protetor e seus planos de estudar e se progredir são
frustrados.
Adolescente, sem em quem mais se apoiar, o menino precisa trabalhar para seu sustento e alugar um quarto. Aqueles
efervescentes anos mudancistas, de bossa nova, de construção de
Brasília, de vitória na copa do mundo e um otimismo sem fronteiras na esteira do desenvolvimentismo inaugurado por Juscelino
Kubitscheck, servem de pano de fundo para que AT, com sua inegável maestria e num viés analítico, explore os rumos e percalços
do próprio país.
Querida Cidade rastreia um imaginário social, político e
coletivo, em que os totens e referencialidades de uma geração – a
música, a arquitetura, o cinema, o teatro, a literatura, o futebol –
vão compondo, em rica intertextualidade, um enredo híbrido em
sua forma, mas com uma temática subjacente, quando o Brasil
profundo e desigual é o leitmotiv do autor. Num ritmo fragmentário, em que o fluxo de consciência e de memória culminam num
rico caleidoscópio de uma época de profundas transformações,
acaba por metaforizar não apenas o desejo íntimo do personagem
de não perder o bonde da história, mas de um país cujas ambições
vanguardistas e modernizadoras em curso serão frustradas com a
ditadura pós golpe de 1964.
Como o Brasil, o personagem depara-se com atropelos,
paradoxos e impossibilidades e a melancolia da interdição vai
percorrendo toda narrativa, dando a senha para um mergulho
em universos e ambientes distópicos. Entre o real e o onírico, há
momentos de pura epifania, em que a expertise de AT se projeta
com toda potência e carga simbólica nos recursos e planos de que
se vale para o desenvolvimento da trama. Ao criar outras atmosferas dentro desse mundo, do vivido ao sonhado, o desejo, as fantasias e o delírio se entrelaçam em simbiótica relação, sensação que
nos remete a Ana Hatherly, autora portuguesa, para quem “em arte
a realidade verdadeiramente possível é a que nós inventamos”.
Passado e presente do personagem avultam numa sequência vertiginosa de relatos e situações às vezes insólitas ou suprarreais, ressonância dos melhores ecos do realismo mágico, valendo
ressaltar as cenas em que, do alto de um prédio ilhado por água, o
narrador se vê na torrente do rio existencial, lá onde seus fantasmas e obsessões emergem sem pudor e acabam por afogá-lo no rio
tumultuário da solidão e no caudal caótico e espantoso das ilusões.
Querida Cidade vem confirmar o percurso literário de um
autor, membro da Academia Brasileira de Letras, cujas obras transitam por nosso passado recente e que desnuda a realidade não
apenas com a responsabilidade estética que toda arte demanda,
mas com o compromisso ético de um escritor fiel ao seu mundo,
ao seu tempo, às suas contradições e aos seus dilemas. Ao ler esse
romance pungente, percebe-se estreita convergência da ficção
de Antônio Torres com o que disse James Wood, crítico e ensaísta
inglês em A Máquina da Ficção: “A literatura faz de nós melhores
observadores da vida; e permite-nos exercitar o dom da própria
vida; que por sua vez nos torna mais atentos ao detalhe na literatura; que por sua vez nos torna mais atentos ao detalhe na vida.”