Junho, 2023 - Edição 292
Afonso Duarte: a ambição de ser europeu
O poeta que exaltou a gênese cósmica da natureza, a celebração
panteísta da vida, a reposição da democracia, a ambição de ser
europeu e a supremacia dos grandes valores universais.
A poesia afirma-se na palavra que desperta outra palavra, mais
outra e outras mais enquanto se manifesta o ímpeto do diálogo interior. Fixa o que surpreende o poeta a cada momento: as pulsões da
terra na sua diversidade, o voo e o canto dos pássaros, a exuberância
das árvores e das flores; o curso dos rios, a inquietação do mar e a
interrogação dos astros. Recorre também à memória da infância e da
adolescência, à vulnerabilidade da condição humana, ao encontro
com o mundo e ao seu permanente desconcerto. É a vida inteira em
tudo o que é deslumbramento e em tudo o que é o seu contrário.
Um dos grandes poetas portugueses da primeira metade do
século XX, Afonso Duarte (1884-1958) nasceu na Ereira, uma das ramificações do concelho de Montemor-o-Velho, próximo da Figueira da
Foz. Integra-se no Baixo Mondego, onde nasceram escritores, poetas,
artistas, mestres universitários e outras personalidades de evidência
cultural, política e social. Basta citar: Fernão Mendes Pinto e Jorge de
Montemor; Manuel Fernandes Tomaz, líder da revolução liberal; o filósofo Joaquim de Carvalho; os poetas Afonso Duarte, João de Barros e
Santiago Prezado; os pintores Manuel Jardim, Cândido da Costa Pinto
e Eduardo Nery, o crítico literário João Gaspar Simões, os cineastas
João César Monteiro e José Mário Grilo.
O itinerário de Afonso Duarte pode, assim, resumir-se: fez o
ensino primário na Ereira e Alfarelos e o ensino secundário e universitário em Coimbra. Licenciado em Ciências Físico-Naturais, lecionou
em Vila Real de Trás os Montes, em Lisboa e, sobretudo, em Coimbra.
Todas estas cidades deixaram-lhe reminiscências inapagáveis. Todavia,
uma das marcas mais profundas ocorreu na altura em que foi incorporado no serviço militar, durante a participação de Portugal na primeira
Guerra Mundial: ficou paraplégico e, até à morte, com a mobilidade
extremamente reduzida.
A revelação literária de Afonso Duarte, num órgão de projeção
nacional, verifica-se em 1912, na revista Águia, dirigida, no Porto,
por Teixeira de Pascoaes. Também em 1912 funda, em Coimbra, a
revista Rajada que reúne poetas, ensaístas e artistas plásticos que
viriam a salientar-se na cultura e na política: Alberto Veiga Simões,
crítico, historiador, diplomata de carreira e ministro dos Negócios
Estrangeiros; Nuno Simões advogado, ministro de várias pastas na primeira República, que nunca deixou de escrever nos jornais, ocupando-se da aproximação cultural luso-brasileira. Almada Negreiros, que
procurava, então, concluir o Liceu em Coimbra, apresenta na Rajada
alguns dos seus primeiros desenhos.
Apoiado por João de Barros – ainda em 1912 – Afonso Duarte
tem editado em Lisboa o primeiro livro, Cancioneiro das Pedras.
Coloca-nos perante a relação possessiva com a terra, o rio, o mar:
“canto o amor de meus campos e baldios/ meu casal que é uma ilha
aos quatro ventos.” A Ereira com os rigores de inverno fica, por completo, transformada: “As cheias vindas às casas! / tudo afoga em dilúvio,
ervilhal e giesta, /do próprio lar as brasas! /o vento assopra ao desamparo, o vento grita, / como um louco varrido! /A Aldeia é um gemido.
(…) “Asa do vento, como vens distante? E o vento avança, o vento diz:
mais longe!”. A exaltação entre o real e o imaginário, feita de árvores, de
pedras e de rios, vai prosseguir noutros livros revistos e selecionados,
em 1929, num único volume: Os 7 Poemas Líricos. Predominam os três
reinos da natureza. Tema que vai perdurar na criação poética e nas
investigações etnográficas sobre os usos, os costumes e as tradições
locais: Um Esquema do Cancioneiro Popular Português e O Ciclo do
Natal na Literatura Oral Portuguesa.
Dividiu-se entre Coimbra e a Ereira. Regressava sempre à Ereira,
mesmo quando residia em Coimbra. Colaborador permanente da
Seara Nova, Afonso Duarte identifica-se com a doutrinação e a crítica,
desenvolvida a partir de 1921, por aquele grupo e cuja revista – na síntese de Raul Proença – incentiva a formação de “uma opinião pública
nacional que exija e apoie as reformas necessárias”. Para garantir “os
interesses supremos da nação, opondo-se ao espírito de rapina das
oligarquias dominantes e ao egoísmo dos grupos, classes e partidos”.
Reclamava a urgência de “contribuir acima das Pátrias, a união de
todas as Pátrias, uma consciência internacional bastante forte para
não permitir novas lutas fratricidas”
A luta pela reposição das liberdades constitucionais, a defesa da
República, a rejeição da ditadura determinou, em 1932, o afastamento
inexorável de Afonso Duarte da função pública. Tem mais tempo para
frequentar as tertúlias, nos cafés de Coimbra, pontos de encontro de
conspiração e debate das várias tendências da oposição sujeitas às
perseguições da PIDE e à condenação ao ostracismo.
Afonso Duarte estabeleceu a ponte entre a sua geração e as
gerações seguintes. Sem romper com Teixeira de Pascoais, que enaltece em todas as homenagens – “Saúdo-te nos Ares, não na desventura/
da Terra onde apodrecem as raízes:/Pois as estrelas sabem o que dizes,
/ os Deuses te mantêm na sua Altura” – passou a ser reconhecido
como um dos mestres da geração da Presença (Régio, Torga, Nemésio,
Branquinho da Fonseca, Adolfo Casais Monteiro). Também será, anos
depois, um dos mestres da geração do Novo Cancioneiro, os neorrealistas (Carlos de Oliveira, Cochofel, Joaquim Namorado) que, na
revista Vértice, se destacaram no protesto social e político, ligados ao
marxismo e, muitos deles, ao Partido Comunista, ora como militantes,
ora como compagnons de route.
Tem Afonso Duarte uma produção literária contínua. A publicação, em 1947, do livro de poemas Ossadas acentua o renome literário.
E dá-nos a conhecer as relações literárias com poetas e intelectuais do
Brasil. Basta indicar Cecília Meireles. Optou, a partir das Ossadas por
uma linguagem despojada e concisa: “Poemas breves/ como o instante
da flor/ que nasceu para morrer.” E os exemplos são numerosos: “uma
só rosa vale o roseiral. /Porque me escreves longo o teu poema? /O
inspirado instante sem igual/ acaso não será hora suprema?”
A geração do Orpheu, em especial a obra ortônima e heterônima de Fernando Pessoa, assumem, nos anos 1940 e 1950, projeção
nacional e internacional. Permanecia, contudo, entre nós, a resistência
acerca da autenticidade dos símbolos e dos mitos que fundamentam
a Mensagem; aos rasgos torrenciais de Álvaro de Campos na Ode
Marítima e na Ode Triunfal; e, por exemplo, ao poema Tabacaria
(publicado em 1933, na Presença). Introduziu numa expressão original
do registo do tempo, do sentimento de incerteza, da sensação de vazio,
da solidão e incompreensão em face de tudo que rodeava e envolvia o
próprio Fernando Pessoa.
Numa alusão a estas ruturas que vão consolidar a modernidade portuguesa, Afonso Duarte rejeita “o estilo enovelado dos poetas fáceis”. Não se afasta do modelo literário que exaltava a Ereira e
Coimbra: “É na poesia lírica dos rios,/ – no sarcasmo das rugas da
montanha – no que me enche de mar, seu sonho e desvario – que o
meu retrato vivo se desenha.” A interpelação política, com exigências
morais e cívicas, surge nas Ossadas e nos outros livros que publica:
“Honra. Brio. Dignidade: Onde estais? Quem vos Preza?” Enfrentava
a política e políticos que governavam o país: “Lembram-me bichos,
carochas, centopeias, /Musgo, paredes húmidas, bolores, / ao pensar
na pobreza! Ideias. E causam-me suores.”
O poeta foi tudo isto e, ao mesmo tempo, mantinha a ambição
de ser europeu. O ano de 1949 não apagará os horrores da Segunda
Guerra Mundial e, no plano interno, sucediam-se as polêmicas em
torno do movimento criado devido à candidatura presidencial de
Norton de Matos. A oposição encontrava-se retalhada. A PIDE multiplica as prisões em todo o país.
É neste ano que Afonso Duarte escreveu um dos seus mais
conhecidos sonetos: Terra Natal. Muito mais do que um soneto, é
uma proclamação: “E cá mesmo no extremo Ocidental/duma Europa
em farrapos, eu/quero ser Europeu: quero ser Europeu/ num canto
qualquer de Portugal.” Reportando-se, à situação do país e à sua própria situação como português e poeta, orgulhoso das suas origens,
acrescenta: “Um presídio será, mas é meu berço! /nem noutra língua
escreveria um verso/ que me soubesse ao sal desta harmonia.:”
Afonso Duarte tem publicadas as suas Obras Completas, mas
falta a organização de uma antologia dos poemas mais significativos,
para termos acesso direto à amplitude do poeta que manteve uma
cidadania participativa, procedeu à celebração panteísta da vida, à
força cósmica da natureza e convocava a permanência efetiva no cotidiano dos grandes valores universais