Maio, 2023 - Edição 291
O inventor de verdades
As Aventuras de Alice (no País das Maravilhas e Através do Espelho)
oferecem ao leitor mais atento algumas sugestões para a explicação de importantes problemas linguísticos, psicológicos e até biológicos. Lewis Carroll não
era um especialista da linguagem. Por isso mesmo, o que me chamou a atenção
foram duas verdades inventadas por ele, ambas de interesse para o estudioso
da linguística ou da semiótica.
A primeira delas é a atribuição a uma questão “linguística” do eterno
desentendimento entre gatos e cachorros. O gato de Cheshire (aquele que fica
invisível, deixando o sorriso no ar) explica a Alice por que ele era louco; e um
cachorro, não: o cachorro rosna quando está zangado, e abana a cauda quando está contente. Mas o gato rosna (ronrona) quando está contente, e abana
a cauda quando está zangado. (CARROLL, L. Alice’s adventures in Wonderland
and through the looking glass. Harmondsworth, Middlesex: Puffin Books, 1976,
p. 88.)
Em outras palavras, Lewis Carroll inventou uma belíssima explicação
para a eterna briga entre cães e gatos: o “sim” em gatês equivale a um “não” em
cachorrês, e vice-versa! Si non è vero...
Lewis Carroll – e aqui vai sua segunda invenção da verdade – também
questiona, com sutileza, o conceito tradicional do pronome como substituto
do nome. Quando o Mosquito dentro do espelho pergunta a Alice se ela não
gostaria de perder o próprio nome, ela responde que não. E o Mosquito argumenta: se ela não tem nome, a governanta não poderia chamá-la para as lições
da escola. Mas Alice responde que, embora não tivesse nome, a governanta a
chamaria de “menina”. (Miss) (Ibidem, p. 228-9).
Nessa passagem, há um questionamento a respeito do conceito de
pronome. De início, Alice contradiz a definição tradicional de pronome como
substituto do nome: se ela não tem nome, pode ser chamada pelo hiperônimo
menina (Miss!) (= senhorita).
Isso significa que menina também é um substituto do nome, e não se
constitui num pronome. Mais adiante, Alice, sozinha, esquece o nome das
coisas e o seu próprio nome. E diz, enquanto anda: “(...) depois de tanto calor,
ficar dentro de... dentro... dentro de quê? (...) Eu quero dizer ficar debaixo de...
debaixo de... debaixo disto, ora!”
E colocou a mão no tronco da árvore, surpresa por não saber que se
tratava de uma árvore: “É possível que não tenha nome nenhum... vai ver, não
tem mesmo.” (Ibidem, p. 230).
Se o pronome fosse substituto do nome, Alice não poderia usar os
pronomes quê (dentro de quê) nem isto (debaixo disto, ora!) para substituir um
nome que não existe! (É bem possível que não tenha nome nenhum).
Isso significa que, intuitivamente, Lewis Carroll inventou a verdade de
que o pronome deve ser historicamente anterior ao nome, já que se pode usar
o pronome para coisas que ainda não têm nome ou para coisas cujo nome se
ignora. Se não conheço uma pessoa, pergunto a quem a conhece: “Quem é essa
pessoa?” Uso dois pronomes que se tornarão desnecessários no momento em
que eu aprender o nome dessa pessoa.
Muitos outros escritores, além de Lewis Carroll, incursionando às
escuras pelas áreas múltiplas de conhecimento, chegaram a conclusões espantosamente próximas da verdade, graças à intuição e ao gênio de sua pena
mágica! Foi o que fez, por exemplo, Ortega y Gasset, ao “inventar” o étimo de
snob, como oriundo do acrônimo formado pela expressão latina sine nobilitate. (Ver ORTEGA Y GASSET, José. A rebelião das massas – trad. de Herrera Filho
– Rio de Janeiro: Livro Ibero-Americano, 1971, p. 26, nota 5, de rodapé: o autor
diz que, na Inglaterra, as listas de residências indicavam junto a cada nome o
ofício e a classe da pessoa. Por isso, junto ao nome dos simples burgueses aparecia a abreviatura s.nob., que quer dizer, “sem nobreza”. Essa seria, segundo
ele, a origem da palavra snob).
A lição de moral, se é que alguma lição tenha moral, é que não basta o
acaso de uma maçã para dar ao Homem o fogo de Prometeu, a descoberta da
lei das atrações ou a felicidade da perda do paraíso da ignorância. O progresso
da humanidade nasce mesmo é da intuição mágica das grandes sensibilidades,
que faz a fama do gênio e a conquista das ciências.