Maio, 2023 - Edição 291

O espelho bisotado: um diálogo de textos

O contista, romancista, jornalista brasileiro e membro da Academia Brasileira de Letras, que possui uma vasta produção literária e com quem sempre estou em contato, Ignácio de Loyola Brandão, recebeu nossa crônica Penteadeira, que começa assim: “Restaurou a antiga penteadeira, com o espelho de cristal bisotado e a banqueta de couro, que ficava no quarto dela, a sua mãe. Muitas vezes a filha a viu frente ao espelho, que lhe parecia baço, coberto de pó. A mãe abria potes de cremes, passava unguentos, o rosto lambuzado de grumos. Que esperava encontrar naquelas geleias? Juventude eterna? Mucos verdes escorriam em sua pele. Havia frascos de perfume, meio abertos, violentos, exalando odores fortes em estranha alquimia. Quando o sol batia na penteadeira, quase na hora do crepúsculo, o torpor morno aquecia as essências e a filha tinha vontade de chorar. A mãe fenecia tristemente. Algo acontecera no passado dela que a tornara tão vulnerável. Não conseguia envelhecer com graça e se satisfazer com o florescimento da filha, ao contrário, corroía-se de ciúme e inveja.” Qual não foi minha surpresa, quando Ignácio publicou a seguinte crônica no jornal O Estado de São Paulo, do dia 12 de março, que me foi enviado pelo professor Luiz Gonzaga Bertelli:

O espelho biseautê


Ignácio de Loyola Brandão


“Para Paulo Caruso, amigo de uma vida. Abri o e-mail de Raquel Naveira, escritora mato-grossense, e veio uma poética crônica. Ela, assim que publica na sua terra, envia aos amigos. Fui atraído pela frase: ‘Restaurou a antiga penteadeira, com o espelho de cristal bisotado e a banqueta de couro, que ficava no quarto dela, a sua mãe.’ Bisotado. Há quanto, quanto tempo não lia, sentia, esta palavra?

Vi dona Maria do Rosário, diante da penteadeira – também se dizia psyché – com espelho bisotado, às vezes chamado de bisotê. Depois, Fanny Marracini ensinaria que em francês é biseauté. O que significava? Por mais que olhasse para o espelho, não entendia, só via mamãe feliz. Papai me dizia, ‘não sei o que é, mas sua mãe quando se senta na penteadeira, fica tão bonita’. Seria o biseautê? Mas o que era aquilo?

Perguntava, não respondiam. Desconfiei que não soubessem, ou fosse coisa que criança não podia saber. Quantas vezes eu entrava na sala, todos murmuravam ‘tem criança’ e se calavam. Custava me explicarem o que era biseautê? Ou bisotado? Essa coisa que fazia mamãe bonita, feliz quando saía para o cinema, para a reza na matriz, para uma festa? Mal ela saía, eu ia para o quarto e ficava a olhar para o espelho, para meu rosto, a fim de saber se eu estava mudado, era mais bonito. Não, não estava, era feio. Esquisito, me condenavam. Um dia, percebi que, na margem do espelho, havia uma pequena região diferente. Um mínimo rebaixo. Chanfrado, disse vovô Vital. Quando me olhei nele, me vi bonito. Somente naquela moldura. Assim descobri o que era biseautê. Beleza. Cada vez que entrava no quarto, me olhava naquele estreito território, onde eu era bonito. Seria o mesmo com mamãe?

Um dia, vi mamãe pentear o cabelo, passar ruge, apanhar uma bola de vidro com quatro letras, Coty, passar o perfume, meu pai entrou: ‘Você está mais linda do que nunca!’. Seria também aquele perfume? Um dia, dia mais horrível, a funcionária que ajudava na faxina deixou cair o cabo do escovão que dava brilho no assoalho, e o espelho partiu-se em mil. A dor de mamãe. ‘Meu espelho, me fazia tão linda.‘ Ajudei a pegar os cacos, encontrei pedaços do bisotado. E se eu guardasse um pedacinho dele, poderia mudar minha cara quando estivesse sozinho? Mudando a cara, as meninas da classe sorririam para mim, afilhado dono do bar me daria um naco do lanche dela, tão apetitoso. Um dia, a professora leu minha redação, chamava-se composição, e disse: ‘Nota cem. A melhor redação do ano. Quero que todo mundo leia para saber como se faz.” Tirei meu espelho do bolso, olhei, ouvi: ‘Você é o menino mais bonito da classe’, dito pela Neuce, irmã da professora Lourdes.”

Por Ignácio de Loyola Brandão, jornalista e escritor, autor de Zero e Não Verás País Nenhum. O Estado de S. Paulo, 12/03/2023