Maio, 2023 - Edição 291
Lourenço 23
O centenário do nascimento de Eduardo Lourenço,
cujas comemorações terão início a 23 de maio, vão celebrar,
em congressos, seminários e em colóquios, a obra e a intervenção cívica de uma das mais notáveis personalidades da
cultura portuguesa. A Biblioteca Nacional de Lisboa tem em
preparação uma exposição bio-bibliográfica, que pretende
ser a mais exaustiva possível.
Os anos 1920 são uma época de ouro, o tempo em que nasceram, viveram, atuaram e faleceram poetas, escritores, dramaturgos, ensaístas, investigadores científicos e protagonistas políticos
que intervieram, decisivamente, nas grandes questões contemporâneas, que se encontram vinculados à projeção da cultura e da
sociedade portuguesa à escala nacional e, em algumas circunstâncias, a uma dimensão internacional. Eduardo Lourenço é uma
dessas grandes personalidades.
Eduardo Lourenço, nasceu a 23 de Maio de 1923, em São
Pedro do Rio Seco, o princípio ou o fim da linha ferroviária da Beira
Alta, o espaço de chegada ou de partida do comboio que trazia ou
levava notícias e pessoas para a Europa.
Fez Eduardo Lourenço, os primeiros estudos secundários no
liceu da Guarda, na cidade que é ponto mais alto de Portugal. Ele
próprio assim a caracteriza, num texto que passou a ser referência
obrigatória: “o nosso mar de terra e de pedra é a meseta contígua,
matriz de onde nos separamos, espécie de deserto, de onde durante
séculos inquietos (…) esperávamos (…) os nossos próximos castelhanos.” Também Eduardo Lourenço a classifica “a mais portuguesa
das fronteiras”, mas “lugar de um diálogo com aqueles que foram os
nossos adversários durante séculos”.
As comemorações do centenário de Eduardo Lourenço – que
era sócio correspondente da Academia Brasileira de Letras e que
viveu e lecionou no Brasil – terão início a 23 de Maio em São Pedro
do Rio Seco, em Almeida e na Guarda. Vão prosseguir, com congressos, seminários e em colóquios em Coimbra, em Salamanca,
em Bolonha, em Lisboa, em Évora e algumas cidades do Brasil.
Além de uma exposição em itinerância nacional e internacional
em cátedras e redes de leitorados. A Biblioteca Nacional de Lisboa
tem em preparação uma exposição bio-bibliográfica, que pretende
ser a mais exaustiva possível.
Rodrigues Miguéis: “sofro de uma doença ingênita, hereditária,
crônica, incurável que se chama Portugal.” Há coincidências entre
José Rodrigues Migueis e Eduardo Lourenço, mas também há
diferenças e complementaridades entre estes dois exilados políticos. Lourenço e citamos, por exemplo, duas obras: O Labirinto
da Saudade (1978), questionou problemas muito mais complexos
e muito mais profundos. Ao deter-se em Portugal Como Destino
Seguido de Mitologia da Saudade (1999) sobre o modo como esse
destino é miticamente determinado, recorre ao o seu saber (histórico, filosófico, literário), apresenta-nos uma imagem imparcial
do ser português, na sua singularidade e universalidade, espelho,
onde, observando-se, pode conhecer-se e aceitar-se “tal como foi e
é, apenas um povo entre os povos. Que deu a volta ao mundo para
tomar a medida da sua maravilhosa imperfeição”.
Logo na primeira obra reunida em volume, Heterodoxias
(1949), Eduardo Lourenço distanciou-se ideologicamente dos seus
amigos mais próximos. Sem fazer qualquer concessão política
que o manteve sempre vigiado pela polícia política, e também à
ortodoxia católica identificada com o regime de Salazar, Eduardo
Lourenço rompeu com frontalidade contra a ortodoxia marxista e
comunista que dominava entre os intelectuais de esquerda.
Todos os ciclos da criação poética, todos os ensaios filosóficos, todas as interpelações cívicas e todos os textos políticos de
Antero de Quental (1842-1891) foram objeto de estudo e interpretação de Eduardo Lourenço, ao longo de mais de cinquenta anos.
Encontram-se agora reunidos num único volume com o título
genérico Antero, Portugal como Tragédia.
Para Eduardo Lourenço, Antero é “a maior referência intelectual portuguesa” e “o primeiro português que teve uma consciência
trágica do destino humano”. E justifica que vários ensaístas, para
retirar Antero do “lote dos suicidas anônimos”, atribuem a procura
desesperada da morte a depressões patológicas, a uma peripécia
subjetiva ou, ainda, a uma tragédia sentimental, quando se trata
do “ato de uma vida que desejou tocar a face de Deus e não a encontrou”. A essência do trágico resultado do “combate a rosto descoberto que destrói uma por uma, com uma espécie de raiva triste, todas
as flores da ilusão, todas as esperanças que o nascer do dia oferece à
alma humana”.
Antero – considera Eduardo Lourenço – marcou o início
da nossa modernidade, representa “o seu próprio ato fundador”.
Verificou-se na criação poética – e esta é a primeira leitura literária
profunda que se faz a partir das Odes Modernas – não apenas ao
nível da ideia, das incursões no universo da filosofia; na poesia
social, na “poesia revolucionária do futura”, mas ao abrir caminho
ao imaginário de Cesário Verde, de Camilo Pessanha e de Fernando
Pessoa.
Teve, contudo, maior impacto na afirmação da modernidade
o discurso inaugural das Conferências do Casino (1871) Causas
da Decadência dos Povos Peninsulares. Introduziu uma revolução
cultural que “nem é de natureza literária, nem política, nem mesmo
ideológica ou banalmente filosófica, embora se traduza em todos
estes planos, mas religiosa”. Proposta sem precedentes em Portugal
“no círculo da religião, não abstratamente visada, mas concreta,
institucional”, abrangendo todos os valores intocáveis, desde
os da Pátria aos da Justiça, desde os da Ordem aos da Família.
Estabeleceu, pela primeira vez em público, um separar das águas,
“um ajuste de contas da nossa cultura com ela mesma”.
Os escritos de Eduardo Lourenço sobre Camões, conferem
ao autor de Os Lusíadas uma amplitude que ultrapassa todos os
outros autores que escreveram em língua portuguesa. Destaca a
importância que Camões assumiu como criador da Língua, como
expressão de vida e de cultura. Mais do que através de qualquer
outro escritor, é através de Camões que Eduardo Lourenço consegue pensar Portugal, essa enigmática personagem coletiva que está
sempre no centro dos seus interesses e dos seus sentimentos.
Ao abordar alguns aspetos genéricos de algumas obras
representativas de Eduardo Lourenço, quando se aproximam as
comemorações do centenário do seu nascimento, julgo revestir-se
de oportunidade e interesse transcrever uma passagem da última
entrevista que concedeu, em 2017, ao jornal Público: “Portugal não
é uma ilha, mas vive como se fosse. Talvez por uma determinação
de quase autodefesa. O que me admira mais não é a preocupação
constante que temos em saber qual é a figura que fazemos no mundo
enquanto portugueses. Todos os países terão à sua maneira essa
preocupação. É o excesso dessa paixão. É preciso que não estejamos
sempre a viver um Ronaldo colectivo, um ‘nós somos o melhor do
mundo’.” Reflete, em muitos aspetos, o que predominou no intelectual e, também, no homem de convívio.