Maio, 2023 - Edição 291
Direto da Revista

Antes de ser abatido a tiros, em maio de 1957, o deputado Gabriel
Quadros chegou a sair no braço com o feirante José Guerreiro, numa disputa
pela paternidade de gêmeos. A mãe das crianças, Francisca Flores, casada
com o feirante, dizia que eles eram filhos do deputado. Por causa do escândalo,
Jânio, o então governador de São Paulo, ameaçou encerrar a carreira
política
Vale dizer que os dois não tinham uma relação muito amistosa.
Eleitos pelo Partido Trabalhista Nacional (PTN), Jânio era mais à esquerda,
enquanto Gabriel era mais à direita e, desse embate, pérolas históricas
foram geradas, como o caso de “jâniofobia”, termo cunhado por Gabriel
para falar do contágio dos parlamentares.
Um dos maiores embaraços que Jânio Quadros enfrentou quando
estava no governo de São Paulo (1955-1959) foi o assassinato de seu pai.
Médico e farmacêutico de formação, o deputado Gabriel Quadros morreu
baleado pelo marido de sua amante. Em si, a situação já era delicada.
Acontece que, ainda por cima, Gabriel e Jânio nunca tiveram um relacionamento tranquilo como pai e filho, e, apesar de ambos terem sido eleitos
pelo Partido Trabalhista Nacional, PTN, a coisa não ia melhor na política.
Militante da extrema esquerda, Jânio recebia ataques sistemáticos de
Gabriel, que estava à extrema direita e chegou a usar a expressão “jâniofobia” para se referir a um “vírus” que, segundo ele, andava contaminando
os parlamentares. “Já há alguns casos de contágio neste plenário”, disse o
deputado, em um discurso de 1957 na Assembleia Legislativa.
A história do assassinato de Gabriel remonta à época em que o
médico se elegeu vereador pelo Partido Democrata Cristão (PDC), em
1951, e tinha como cabo eleitoral o feirante José Guerreiro, dono de uma
barraca de limões. Sabidamente mulherengo, o vereador traiu seu apoio
iniciando um caso com a mulher dele, Francisca Flores, vulgo Nena.
O triângulo ainda não havia sido desfeito quando Nena engravidou de
gêmeos. Num tempo em que o exame de DNA estava longe de ser criado,
as duas crianças, batizadas de Jaime e José Carlos, foram motivo de acirrada disputa entre o feirante e o ex-vereador – que agora cumpria mandato
como deputado estadual pelo PTN. De temperamento notoriamente irascível, dado a escândalos, Gabriel Quadros chegou a sair no braço com José
Guerreiro em plena Praça da Sé, para decidir quem era o pai dos meninos.
Só no “olhômetro”
A princípio, Nena afirmava que os filhos eram de Gabriel e, por
conta disso, o deputado chegou a acomodá-la por alguns dias em seu
gabinete na Assembleia Legislativa. Em seguida, ele a transferiu para sua
própria residência, na avenida Rebouças. Ocorre que, apesar de manter
com o deputado apenas um casamento de aparências, sua mulher oficial,
Leonor, que agora morava com Jânio, não queria a amante do marido
vivendo em uma casa que, afinal de contas, era sua também. Então, o
deputado levou Nena para um sobrado que possuía na avenida Lins de
Vasconcelos, na Vila Mariana, zona sul de São Paulo. O irônico é que, mais
tarde, quando os meninos já estavam suficientemente crescidos, ficou
óbvio pelo método utilizado na época, o “olhômetro”, que eles eram filhos
de Guerreiro; além de tudo, não havia caso de gêmeos na família Quadros.
Mas agora que tinha começado a briga, o deputado, até por uma questão
de honra, levou a defesa da paternidade até o fim.
José Guerreiro também não arredou o pé. Logo foi fazer uma visitaa Nena, na Lins de Vasconcelos.
Disposto a reaver os filhos, ele passou
por cima da vontade da mãe deles e os levou dali para o cômodo onde
morava, nos fundos de um sobrado na Mooca, zona leste de São Paulo.
Ao saber do “sequestro”, Gabriel Quadros juntou cinco capangas, carregou
sua arma e rumou para a Travessa Nelson Atallah, 9, onde ficava o sobrado.
Foi disposto a “resgatar” Jaime e José Carlos. Era por volta de 8 horas
de um sábado, dia 18 de maio de 1957, quando o deputado e três de seus
homens arrombaram a porta do cômodo e avançaram na direção dos
garotos. Ainda sonado, o feirante recebeu diversas pancadas, inclusive de
cassetete, mas lutou contra os agressores como pôde, usando um pedaço
de caibro que encontrou perto da cama. Mesmo estando em minoria,
conseguiu imobilizar o rechonchudo rival e arrancar dele a arma. No meio
da confusão, desatinado, José Guerreiro disparou seis vezes contra Gabriel
Quadros, que caiu morto. Não satisfeito, o feirante virou a arma na direção
dos capangas do deputado, que, apavorados, correram em disparada. Na
fuga, levaram os gêmeos. Como estava apenas de ceroulas, Guerreiro, que
tinha então 30 anos, voltou para o cômodo, vestiu-se e sumiu dali.
De penhoar, sem sapato
Em pouco tempo, a pacata travessa e as ruas adjacentes foram
tomadas por uma multidão de curiosos. Para se aproximar da investigação,
e saber em primeira mão detalhes do que tinha ocorrido, os vizinhos se dispunham a prestar testemunhos voluntariamente. A polícia isolou a área,
barrando o acesso inclusive de jornalistas, para efetuar o exame pericial.
O corpo de Gabriel Quadros foi levado para o necrotério do Hospital Santa
Catarina, onde o submeteram à autópsia. O laudo assinado pelos médicos
legistas César Berenguer e Mattosinho França apontou como causa mortis
“hemorragia interna traumática”. A Secretaria de Segurança Pública determinou
que a Polícia Rodoviária vigiasse as saídas de São Paulo, a fim de
impedir que o carro de placas 2-99-66, usado pelos capangas de Gabriel
Quadros para fugir com as crianças, deixasse a cidade. Enquanto isso, vizinhos
de Nena na avenida Lins de Vasconcelos afirmaram tê-la visto saindo
às pressas de casa, por volta das 9 horas do sábado – portanto depois de o
crime ter sido consumado. Ela ainda estava de penhoar quando embarcou
em um carro que a aguardava. Tamanha era sua pressa que, ao entrar no
veículo, deixou para trás um dos sapatos. Soube-se depois que o carro no
qual embarcara era o mesmo que os homens de Gabriel Quadros utilizaram para fugir com Jaime e José Carlos.
Assim que tomou conhecimento do crime, o governador Jânio
Quadros encaminhou um despacho para a Secretaria de Segurança determinando a abertura imediata
de uma investigação rigorosa.
“O homicídio
de que foi vítima o deputado Gabriel Quadros deve ser objeto de rápido
inquérito, para apuração de responsabilidades. O autor (ou autores) não
sofrerá qualquer coação ou violência, assegurando vossa excelência o
governador, de forma absoluta, garantias e direitos da lei.” O enterro
ocorreu na tarde do próprio sábado, com a presença do governador, que,
segundo seus assessores, foi ao cemitério do Araçá apesar de estar com a
saúde “debilitada” (uma gripe, segundo contou a J.P uma fonte próxima
a Jânio na época). O presidente Juscelino Kubitschek não compareceu.
Foi representado pelo presidente da Câmara dos Deputados Ulysses
Guimarães. Conhecendo o pai de sobra, Jânio declarou à imprensa durante o
féretro que José Guerreiro agira em legítima defesa da honra. Embora
seja comum se afirmar que foi o governador que absolveu o criminoso,
Jânio apenas o perdoou – ele não tinha essa prerrogativa. O feirante foi
indiciado, ficou preso preventivamente durante alguns dias, respondeu
a processo e ganhou a liberdade sem ir a júri, em 1959. Para neutralizar
o efeito do escândalo, o governador chegou a declarar sua carreira política
encerrada – mas, ao contrário disso, em dezembro daquele mesmo
ano registrou sua candidatura a deputado federal pelo PTB do Paraná, e,
depois de eleito, passou a acumular os dois cargos. Os gêmeos reapareceram
com a mãe, por quem foram criados. Nena se desquitou do feirante.