Abril, 2023 - Edição 290
500 anos se passaram...
“Demorou 500 anos, mas vocês chegaram lá...”: assim o presidente da Academia Mineira de Letras, Rogério Farias, deu posse
ao primeiro índio, Ailton Krenak, como membro permanente de
uma academia de letras no Brasil. Reconhecido como filósofo,
poeta e escritor, o novo imortal é um líder indígena, ambientalista,
da etnia krenak, do norte de Minas Gerais. Ailton é um dos nativos
de raiz que mais tem lutado pelos direitos civis e de raiz dos povos
da floresta no Brasil. Escreveu vários livros, entre os quais O Índio
Cidadão e A Sociedade do Medo, denunciando desigualdades e até
a morte do seu povo, como os guarani kaiowá, no Mato Grosso, ao
serem desqualificados como cidadãos, desprezados pela sua cultura e pelas agressões sofridas dentro dos próprios territórios.
O acontecimento na Academia Mineira não mereceu muito
a atenção da mídia, porque o precedente fora aberto no campo
político, pelo novo governo, com a nomeação das índias Sônia
Guajajara, para o novo Ministério dos Povos Originários, e de
Joênia Wapichana, para a presidência da Funai, todas graduadas
e pós-graduadas em universidades dos brancos. Ailton Krenak
é mestre em sociologia e pedagogia, tem ainda dois doutorados honoris causa pela Universidade Federal do Paraná e pela
Universidade de Brasília. O currículo desses indígenas são de fazer
inveja. Sônia Guajajara foi considerada pela revista Time uma das
100 pessoas mais influentes do mundo atual.
Na UnB estão matriculados hoje em cursos de graduação e
pós-graduação mais de 200 representantes indígenas. No mesmo
caso estão a Universidade São Paulo e a Universidade Federal do Mato
Grosso. O constrangedor é que esses cidadãos de raiz são obrigados a
fazer sempre o caminho dos brancos para serem reconhecidos.
Desde o chamado Descobrimento até a eleição do cacique
Juruna para a Câmara dos Deputados, houve sempre um branco
posicionando-se pelos índios. Políticos, acadêmicos, eclesiásticos
e Ongs falavam por eles, nem sempre no interesse deles. Se compareciam aos eventos, eram vistos como ornamentação. Por isso,
só mais recente suas terras, invadidas pelos brancos ao longo da
História, passaram a ser demarcadas como reservas, uma ambígua
política pública que os coloca na condição de viver em território
delimitado, com a perda total ou em parte dos espaços originais,
parcelados com fazendeiros, garimpeiros, “sem terra” e até empresários. Para proteger as comunidades indígenas da tal “marcha
(pioneira) para o Oeste”, Darcy Ribeiro e os irmãos Vilas Boas propuseram a criação do parque Nacional do Xingu, processo que se
estendeu por 10 anos (1952-1961). Abrigou 17 nações indígenas,
ameaçadas de perder suas terras de origem.
Escritores que escreviam sobre a cotidianidade dos povos
da floresta, entre eles o próprio Darcy Ribeiro, José de Alencar,
Antônio Calado, Ecilda Ramos e outros recebiam honrarias, pela
disposição em ajudar a dar voz aos povos indígenas. Eram pessoas que valorizavam e valorizam o conhecimento indígena e sua
maneira de viver. Os índios não recebiam nenhuma. O acesso de
lideranças indígenas à Academia, privilégio de poucos, sinaliza
para uma mudança de tempos e de costumes nesse, chamado,
processo civilizatório.
Criada, em 1897, por iniciativa de Lúcio de Mendonça e
Medeiros de Albuquerque, a Academia Brasileira de Letras (ABL)
tornou-se, desde o início, um generoso abrigo para nossa memória
literária, acolhendo, nos seus 125 anos de existência, a alta intelectualidade brasileira, como Machado de Assis, Joaquim Nabuco,
Artur de Azevedo, Olavo Bilac, Jorge Amado, Rachel de Queiroz,
Manuel Bandeira, Oswaldo Cruz, Santos Dumont, Guimarães
Rosa, João Cabral, que formaram fileiras na Academia Brasileira de
Letras. O grande problema era a aderência do vacilante perfil dos
candidatos aos propósitos da Academia.
Machado de Assis e Joaquim Nabuco, também fundadores
da ABL, defendiam critérios diferentes para os candidatos a ocupação das 40 cadeiras da instituição. O primeiro defendia uma
orientação exclusivamente literário. Nabuco compreendia que
a ABL devia abrigar diversas áreas, com qualidades literárias. A
Academia poderia abrir suas portas para todos que se destacassem
em áreas específicas da literatura e da cultura, desde que tivessem
a publicação de, ao menos, um livro e um percurso reconhecido no
campo intelectual. Mesmo assim, a ABL nunca elegeu um índio. E,
no início do século passado, a população indígena brasileira registrava 2 milhões de cidadãos.
Por estratégia dos seus presidentes, a Academia veio, contudo, se adaptando aos cenários que se apresentavam. Ficou mais
política, admitindo Getúlio Vargas, José Sarney, Roberto Campos,
Marco Maciel, Roberto Marinho, Guimarães Rosa e alguns mestiços, como Domingos Proença e Gilberto Gil, mas nenhum índio.
Austregésilo de Athayde, filho de desembargador de Pernambuco,
chegou a ser biografado como descendente de índios. No período
da ditadura militar, contrariando o pensamento da maioria dos
acadêmicos, ela não imortalizou, entretanto, Juscelino Kubitscheck,
que tanto desejou estar ali, e tinha méritos para tal. Havia vagas até
para estrangeiros, e militares como o general Aurélio Lira Tavares
e outros foram admitidos. Euclides da Cunha, jornalista e militar,
entre outros foram membros da instituição. Em um novo momento, mais pop, imortalizou Gilberto Gil, Fernanda Montenegro,
Paulo Coelho e outros mais. Contudo, Érico Veríssimo, Graciliano
Ramos, Carlos Drummond de Andrade, filhos de escravos como
Lima Barreto e Cruz e Souza – pai do simbolismo brasileiro – nunca
foram absorvidos ali.
Ora, diante de um quadro histórico resumido como esse, o
índio que nós temos na nossa cabeça é aquele que a maioria dos
nossos intelectuais e jornalistas descreveu etnocentricamente, a partir dos massacres e da reação à invasão de suas terras. A Constituição
de 1988 tentou estabelecer um marco para uma refundação das relações do Brasil com os 305 povos originários, procurando lutar para
manter suas culturas, a autonomia e os territórios.
Entretanto, mais que as disposições constitucionais, os
fatos estão conduzindo o processo, em que pese a resistência dos
brancos e dos interesses que envolvem as terras indígenas. Está
começando a ser reconhecido que o Brasil precisa das populações
indígenas para caracterizar sua identidade étnica. Ailton Krenak,
Sônia Guajajara, Joênia Wapichana, Davi Kopenawa Yanomami, os
irmãos Terena e outros têm enfrentado corajosamente os embates
ambíguos dos civilizados. Embora exista desde 1909, a Academia
Mineira de Letras merece, enfim, um “viva” estrepitoso pela iniciativa de tornar imortal um representante nativo, enraizado. Desde o
Descobrimento, os krenak são assassinados em Minas Gerais, sem
que os responsáveis sejam punidos