Abril, 2023 - Edição 290
Gavetas da alma
Guardo nas gavetas da alma sentimentos tantos que, por vezes,
deixo de lado o tempo de fora para viver o de dentro. Desde criança, fui
acumulando. Nem sabia o que ficava, quando, o que não ficava, partia.
Guardo sorrisos de dias simples que explicaram o nascer e o morrer.
Nascem as manhãs e, com elas, os perfumes de esperança de viver sem
medo.
O medo da morte deixo em uma gaveta que, também, guarda a
consciência da transitoriedade de tudo. O rio prossegue. O que rio, também. Sou dos que abraçam o riso como expressão de disposição para não
atender os desânimos que nascem dos tantos poluidores da alegria.
A alegria, na minha alma, mora em mais de uma gaveta. A alegria
dispersa os pensamentos desnecessários, as inconclusas incursões quanto
ao que foi o ontem. Embora com os meus guardados todos, sou do desapego. Não se prende o que já se foi. Não é possível, nem é bom. O rio segue o
curso. O curso da vida é ensinador da plenitude dos instantes. Morrem os
dias, morrem as idades, morrem as paisagens tantas vezes ocupadas com
amor e dor.
Nos compartimentos da alegria, mora, também, a esperança.
Nascem os amanhãs, manhãs que aguardarão ações corretas. Nascem os
jardins plantados em dias que já morreram. Nascem embelezando a história de histórias ainda grávidas, querendo nascer.
Os dissabores ocupam espaço em gavetas inferiores. É difícil pedir
que partam, eles que chegaram depois de partes partidas de mim mesmo.
De feridas, se fizeram cicatrizes. Permito que permaneçam. É bom que
estejam alimentando de memórias os dias de dor. Já não temo a dor nem
o sofrimento. Aprendi a guardar com eles canções de silêncio e canções de
amor. Canto o amor como um desbravador dos campos da existência. Não
desisto dos encontros, mesmo desencontrando, tantas vezes, a verdade.
Há cartas não entregues guardadas em mim e há outras tantas que
recebi. Pintei de ilusões alguns dias e chorei, sem economias, a ausência.
Há os que amei e não me amaram e há os que descobri depois que apenas
armazenaram o que sentiram por mim. Por medo viveram a distância.
Desperdícios? Quem sabe?!
Há os que fingiram sentimentos. E há os que eu fingi acreditar. Era
jovem ainda para o uso correto do “não” e do “sim”. Moram os dois nas
gavetas da alma. E, se estou atento, convivem bem. Saem apenas quando
autorizados. Se estou atento.
A atenção com o outro, tão ensinador de vidas, fui ganhando aos
poucos. Fui lutando contra o que bagunça qualquer gaveta, o egoísmo, e
cedendo espaços para outras histórias contemplarem comigo a vida linda
que não se cansa de nascer.
Se não tenho o poder das demissões dos sentimentos que me diminuem, tenho o poder de aumentar o som dos sentimentos que me elevam.
O som que sopra, nos meus ouvidos, entusiasmos. Não nasci para viver
caído. Nem para me alimentar de baixezas. Nasci para o voo. E, nas gavetas da alma, moram as asas que preciso para voar voos inteiros em dias
inteiros de amor.
O amor é o mais belo guardado que mora em mim. E mora desde
sempre. Ou nem morada eu teria. Ou nem eu existiria. A minha alma se
alimenta e se lava de amor. Se fortalece e se perfuma de amor. A minha
alma se faz poeta no amor que sopro para dar vida a novos sonhos, a novos
encontros, a novas formas de formar felicidades.
Só há um jeito de amar? Não. Há mais de uma gaveta em minha
alma