Março, 2023 - Edição 289
O ar dos meus desejos: labirintos da escrita de Ana Arguelho
Finalmente em minhas mãos O Ar dos meus Desejos, o livro
da professora e amiga de longa data, Ana Arguelho. É preciso,
antes de tudo, escrever um pouco sobre nossa amizade. Colegas
de ofício, demos aulas de literatura e fomos revisoras por muitos
anos da editora da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB).
Nossas mesas de trabalho, uma ao lado da outra. Horas e horas
de convívio, trocas e conversas. Parecíamos, talvez, diferentes em
nossas posturas e maneiras de ver o mundo, mas, na verdade, éramos complementares. Sentíamo-nos unidas pelas lembranças de
infâncias passadas na mesma Bela Vista da fronteira do Brasil com
o Paraguai; a juventude pelas ruas largas de Campo Grande; a formação humanista em Letras; as preferências literárias em comum.
Ainda que não a procuremos, a utilidade nasce da própria amizade. Ana abriu-me portas na carreira, fizemos parcerias em cursos,
apostilas e viagens. A afeição e o respeito mútuo sempre brilharam
entre nós.
Muitas vezes, Ana me falou sobre seus textos e que um dia
os publicaria em livro. Deixou de lado esse projeto, pois, responsável com seu próprio futuro, dedicou-se com afinco aos estudos e à trajetória acadêmica, chegando ao doutorado em Letras.
Emociona-me agora apalpar a capa colorida do artista plástico
Genésio Fernandes e percorrer com os olhos as letras manuscritas
soprando “o ar dos seus desejos”.
Reconheço tantos de nossos diálogos e discussões nestas
páginas. A questão dos limites e dos extremos dos gêneros literários, por exemplo. Serão crônicas? Contos? Poemas em prosa? Lygia
Fagundes Telles já havia exercido essa liberdade em Durante aquele
estranho chá, em que seu secretário na época, Suênio Campos de
Lucena, reuniu textos em que ela comentava sobre sua amizade
com Clarice Lispector e Manuel Bandeira, os “camaradas de letras”;
relatos de viagens à Suíça e ao Irã; reflexões sobre as mulheres;
o discurso proferido em sua posse na Academia Brasileira de
Letras, enfim, várias experiências. Nessa linha, escreveu também
Invenção e Memória, narrando fatos de sua infância, problemas de
fé e depressão e outros instantes e lampejos. O mesmo processo
encontramos em Nélida Piñon, em O Livro das Horas, pedaços
de histórias de horas que não passaram em vão. Em Uma Furtiva
Lágrima, Nélida costura suas reminiscências com os sabores de
detalhes. Diria que livros meus, com subtítulos de “crônicas”, como
Leque Aberto e Manacá, também são compostos de fragmentos
de uma observadora das cenas da vida e das artes. Ana Arguelho,
portanto, valoriza e rejuvenesce os limites formais com esse seu O
Ar dos meus Desejos.
Temos à nossa frente uma figura humana sincera, uma
mulher que cresceu “meio santa, meio pervertida”, cheia de doçura
e ímpeto, alma cigana, contraditória, bicho do mato notívago, insana e lúcida. Fruto de uma base católica e cristã, aluna de colégio
de freiras, embora se coloque como marxista e pregue um ateísmo
racional, de quem se vê como “produto da natureza”, Ana mergulha no sagrado, nos símbolos, nos sacramentos. Sua essência vem
das regiões encantadas dos contos de fadas; das mitologias grega,
céltica e guarani; do fundo das florestas. Cultiva uma estranha
alegria, acima das circunstâncias deste mundo. Lança-se num
realismo mágico. Lembrei-me de Carlos Drummond de Andrade,
que, declarando-se ateu, escreveu inúmeros versos evocando a
Deus, como nestes do “Poema de Sete Faces”: “Meu Deus, por que
me abandonaste se sabias que eu não era Deus,/ se sabias que eu
era fraco?” Ana e Drummond não creem em Deus, mas, certamente, Deus crê neles. Ana tem até mesmo encontros secretos com o
Espírito Santo, do alto do décimo andar de um edifício no centro
da cidade: “Então... a pomba é, de fato, o Espírito Santo. E pode ser
que eu esteja no céu. Súbito, um vento forte vindo das entranhas
da terra me obriga a fechar a janela.”
Ana coloca sua redenção na literatura. Na companhia que
ela lhe fez pela vida: “A literatura me salva”; “E se hoje não perdi o
sonho, não pulei da ponte, não fiz da vida uma aventura errante
foi porque a literatura caminhou comigo.” É um belo depoimento
para as gerações de alunos que passaram por ela e para as gerações
futuras de professores e leitores, como o professor Daniel Abrão,
que escreveu o prefácio e o professor Wanderson F. Fonseca, que
lhe dirigiu uma carta comovente.
Não há temor na velhice de Ana. Em “Crônica da velhice ou
Sagração da Primavera de Stravinsky”, Ana faz um balanço geral: “...
amei e amei de vários jeitos e formas, pela religião e sem a religião,
fui amada e tudo o mais que coube neste corpo e mente em torvelinho”, pois “enquanto se adquire sabedoria, o corpo fenece”, “o inexorável nos assola”; “sorvi a vida com prazer, em sôfregos e grandes
goles, cheia de vigor e tanto fiz que cansei muito cedo”. Restaram
“almanaques de quinquilharias”; livros nas estantes; louças de
antigos jogos e cores variadas; o retrato de uma moça com vestido
azul; a vontade, talvez, de usufruir o amor de um cão; flashes de
estradas e da Cidade Morena e desejos, labirínticos desejos. Somos
conduzidos por Ana Arguelho a esse labirinto que é o mistério da
criação. Ela não nos indica a saída, mas nos seduz.