Fevereiro, 2023 - Edição 288
Particularidades da nossa língua
Há muitas curiosidades a respeito do português nas várias
regiões em que é falado. Uma boa ideia dessas curiosidades está
na coletânea Estudos Linguísticos Crioulos – reedição de artigos
publicados no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, com
introdução e notas de Jorge Morais-Barbosa (Lisboa: Academia
Internacional da Cultura Portuguesa, 1967).
Só para exemplificar: na página 62 dessa antologia, que corresponde às páginas 167 e 168 do Boletim Os Dialectos Românicos
ou Neolatinos na África, Ásia e América, de autoria de Adolpho
Coelho, nela integralmente reproduzido, há a informação de que,
no português de Macau, o plural se forma pela repetição: criança
criança (“crianças”), sium sium (“senhores”), amigo amigo (“amigos”). Os tempos verbais se formam com um advérbio seguido do
infinitivo: o futuro, com logo; o passado, com já: logo ficá (“ficará”),
já principiá (“principiou”). O presente se exprime com o infinitivo
ou com tá (“estar”), em todas as pessoas: tá fazê (“eu faço, tu fazes,
ele faz”), tá andá (“ando”), tá falá “(falo”) entre outras curiosidades
deliciosas.
Paul Teyssier, no livro História da Língua Portuguesa (tradução de Celso Cunha. 4ª Ed. Lisboa: Sá da Costa, 1990, p. 96) cita
uma construção passiva curiosíssima, típica e popular da gente
humilde de Luanda, Angola, extraída de um estudo de Michel
Laban (L’oeuvre littéraire de Luandino Vieira, tese de doutorado,
Paris: Sorbonne, 1959, datilografada): O João, lhe bateram na mãe
dele. João é o paciente; mãe é o agente. No português lisboeta ou
carioca, essa frase se traduz mais ou menos assim: João foi surrado
pela mãe. Mudei bater para surrar porque o verbo bater com complemento introduzido pela preposição em (transitivo indireto) não
poderia ter equivalente passivo adequado.
No meu livro Estudos sobre o Pronome (Brasília: Thesaurus,
2016, p. 36-37), cito o poema “Mudança de tratamento”, de Bastos
Tigre, em que o poeta dialoga com a mulher amada primeiro usando Vossa Excelência, depois a senhora, depois você e, finalmente, tu,
do mais formal para o menos formal, dando a impressão de que,
no dialeto carioca, o pronome tu, à época da publicação do livro
de onde foi extraído o poema (Poesias humorísticas. Rio de Janeiro:
Flores & Manos, 1933), era mais familiar e mais íntimo do que o
pronome você. Se essa diferença entre tu e você realmente existiu,
fica difícil determinar por que e quando essa diferença deixou de
existir.
Curiosa também é a concordância que teria existido no português seiscentista do particípio com o objeto direto, existente no
francês atual, como, por exemplo, na frase: J’ai déchiré la lettre que
j’ai écrite (“Rasguei a carta que escrevi”, em que se observa a concordância do particípio écrite com o feminino lettre, anteriormente
citado; o particípio déchiré não concorda com o objeto, porque este
vem depois do verbo).
Assim, em Os Lusíadas, verso, 47, lê-se: “Depois de ter pisada longamente / Cos delicados pés a areia ardente.” O particípio
pisada está concordando em gênero e número com o objeto direto
areia ardente. Se essa concordância realmente existiu, certamente
não terá sido influência do francês, porque, ao contrário do exemplo francês citado, o particípio em Os Lusíadas concorda com o
objeto que vem depois.
Não sei o quanto já sabemos sobre a nossa língua, mas sei
que há muito ainda a aprender sobre ela...