Janeiro, 2023 - Edição 287
O embelezador de cotidianos
João era o nome do meu tio. O mesmo do João, primo de Jesus, que anunciava no deserto.
Desde cedo, sempre imitei meu tio. Achava bonito o como ele embelezava
suas falas, seus cotidianos. E sem exageros. Ele compreendia que o belo dizer tinha
que ser natural como um canto bonito de um pássaro ou como um sussurrar delicado das águas lambendo as areias da praia.
Tocava violino o meu tio e talvez isso desse a ele uma sensibilidade maior.
Na minha infância, eu ficava sentado embaixo de uma árvore vendo os seus olhos
fechados e as suas mãos certeiras fazendo música na varanda grande da casa da
minha avó. Era como se ele, como os pássaros, também voasse.
Tive um outro tio que era o oposto do irmão. Reclamador ininterrupto do
viver. Agressivo. Causador de fraturas na alma da própria mãe. Nunca me esqueço
de um dia em que ele voltou exultante de uma caça mostrando o animal defunto
entre as mãos. Eu fechei os olhos, e ele gritou comigo temendo que minha compaixão pelo morto se transformasse em ausência de masculinidade. Saí da sala e
fui brincar com Princesa, uma cadelinha de rua, adotada pela casa. Tio João sorriu
para mim e contou histórias bonitas de homens valentes que amavam a natureza.
Os dois irmãos praticamente não se falavam. Tio João virou um homem
importante. Enricou sem perder a humildade. Ajudava a cidade inteira.
Era advogado e dividia a sua clientela entre os que podiam e os que não podiam pagar.
Seus júris eram memoráveis. Leve nos ditos e certeiro na defesa incondicional da
verdade. Explicou muitas vezes os riscos da mentira, da desonestidade. Minha avó,
sorria com a alma pelas conquistas do filho. Do outro, ela rezava. Um dia haveria
de vir um milagre e ele se consertar. O milagre nunca veio. E eu, depois de crescido
nunca quis conviver com esse tio. Viveu de mulher em mulher os discursos toscos
dos machistas. Era racista também. E inventava histórias para justificar a injustificável superioridade de raças. Brigou nas profissões que abraçou e só não morreu na
indigência porque o irmão, a quem tanto criticou, cuidou dele no final.
Ontem, tive um dissabor. Nada muito diferente dos dissabores que enfrentam os irmãos meus de humanidade que vivem no deserto dos pensamentos dos
outros. Fui atacado por discordar de quem concorda com os discursos de ódio, fui
atacado por não acatar os que desferem preconceitos. Confesso que a surpresa me
deixou esvaziado de vontades. Pensei um pouco. Lembrei do meu tio. Imitei sua
gentileza sem desdizer as minhas crenças. Sou dos que creem que as valentias forçadas nos forçam a demitir a razão. Sou um homem de afetos. Gosto dos encontros
e aprendo com os diferentes.
Sou também músico. Ouço no piano, no som que construo, no dedilhar
da minha alma, as almas da humanidade inteira. Os compositores que se foram
moram em mim e moram nas canções. Os livros que leio, também. E também as
lembranças. Não autorizo ninguém a sujar de arrogâncias meu dia. Polidez jamais
será sinônimo de fraqueza.
Depois de encerrada a contenda, voltei para casa. O sol desse início de primavera era convidador de contemplações. Era quase o final do dia. O vermelho que
pintava o céu explicava que o amanhecer não demoraria muito para convidar uma
outra esperança a viver comigo. No fórum onde atuo como juiz, aceito a responsabilidade de diminuir as injustiças do mundo.
Não quero jamais esquecer a razão que me fez, um dia, escolher a magistratura. Cada caso que decido sofro o sofrimento
necessário para não permitir que o erro destrua a vida de alguém. Já ouvi desistências de amigos meus, descrentes de alguma mudança. “A mudança sou eu”, respondo em cada caso que devolvo, à casa da felicidade, o que morava na rua da injustiça.
Chegando em casa, sentei ao piano e toquei uma música que meu tio gostava. Enquanto isso, recebi o beijo da mulher que eu amo e dos meus dois filhos,
gêmeos, um se chama João e o outro José, o nome do meu pai. Meus filhos explicam
para mim, desde os inícios, que o amor não tem fim. Feiuras no cotidiano? Não,
definitivamente não permanecem.