Fevereiro, 2023 - Edição 288
Carnaval e cinzas na poesia de Manuel Bandeira
Manuel Bandeira (1886-1968) soube mesclar tradição literária e
ruptura, passado e presente, em sua obra poética. Em 1917, após uma
luta feroz contra a tuberculose, que o impedira de estudar arquitetura e o
tornara um jovem deprimido, quase inválido, publica A Cinza das Horas,
um dos marcos fundamentais do Modernismo. Lirismo forte, espontâneo,
vindo de fontes íntimas. Cinzas de mágoa, de ressentimento, de morbidez
banhada por um simbolismo tardio. São cinquenta poemas de desencanto, de desalento, de horas ardentes das quais restaram cinza fria (“Esta
pouca cinza fria...). De amor que era chama e se transformou em fumaça
(“O fumo vem, a chama passa...).
Em 1919, surge Carnaval, que consolida o caráter inovador de sua
poesia. Trinta e três poemas de evocação a Baco, satânica, misto de júbilo
e dor. Bandeira mergulha no clima da Commedia dell’Arte, estilo teatral
nascido no século XVI, uma sátira de costumes muito popular na Itália.
As peças eram apresentadas nas ruas e praças, em carroças. Saltam os
personagens de um triângulo amoroso: Pierrô que ama Colombina, que
ama Arlequim, que também deseja Colombina. Pierrô é o palhaço triste,
apaixonado, com ar lunático. Veste-se de roupas largas e brancas, o rosto
pintado de alvaide de chumbo branco, com uma lágrima desenhada na
face. O Arlequim é o palhaço espertalhão, malandro, divertido, carismático, debochado.
Faz movimentos acrobáticos, usa roupa de losangos coloridos. Colombina, a Pombinha,
é criada da filha do avarento Pantaleão, um
tirano mercador de Veneza. É uma moça bela, quase tão refinada quanto
sua ama. Alegre, fútil, sedutora, volúvel. Sabe dançar e enfeitiçar. Seu
coração pertence ora a Pierrô, ora a Arlequim (“Que essa metade é talvez
todo amor/ De Colombina). E Bandeira visualiza em seus versos febris,
ofegantes, sintéticos, o drama bufo das consciências dilaceradas. No longo
“Canção das Lágrimas de Pierrô”, numa sala de espelhos que brilham com
lustres de dez mil velas multicores, o Pierrô entra num salto súbito. Todos
se espantam com suas piruetas e com a paixão com que toca um alaúde
até arrebentar as cordas. Há sangue em seus dedos. Fúria de rejeição
(“Negaste a pele macia/ à minha linda paixão!). De repente, o palhaço que
estava de rastros, pula, eleva-se tão alto como se fosse “romper a esfera
dos astros”. Em “Pierrô Branco”, o bobo palhaço mostra a fonte esquálida, mortificada de insônias, cintilando como “chama pálida, de pálida,
pálida mica...”). Como Bandeira ama reforçar seus pensamentos com o
recurso da repetição de uma palavra. Em “Arlequinada”, Pierrô pergunta a
Colombina a sua idade. Ela lhe parece uma criança frágil, delicada, franzina, de seios pequeninos e inocentes. Pierrô pede perdão pela ousadia de
cantar seus encantos de menina. Já o “Pierrô Místico” procura inutilmente
no leito os abraços de Colombina e constata que a “volúpia é bruma que
esconde abismos de melancolia”. Na pele de “Pierrette”, o poeta toma a
voz de Colombina. Ela busca, num ardil, alguém com alma decadente e
degenerada, que lhe traga um filtro erótico e suplica: “– Vem, meu Pierrô,
ó minha sombra.” O Carnaval continua em seu ritmo frenético até chegar
ao “Sonho de uma Noite de Terça-Feira Gorda”. Os amantes caminhando
pelas ruas, entre a turba, mascarados com fantasias de dominós negros.
E “Assim, de negro, assim por fora inteiramente de negro/ Dentro de nós,
ao contrário, era tudo claro e luminoso.” A “Quarta-Feira” vem com suas
cinzas. Um Pierrô doloroso passa com sua túnica feita de sonho e desgraça. No poema “Epílogo”, que fecha o livro, o poeta confessa que gostaria
de compor um Carnaval subjetivo, fresco, cheio de amor e mocidade,
como o do poema de Schumann, mas, quando acabou, o seu poema tinha
a “morta cor da senilidade e da amargura...”. “Um Carnaval triste, sem
nenhuma alegria.”
Rememoremos a linha do tempo: em 1917, Manuel Bandeira, chamado de “São João Batista do Modernismo”, publica A Cinza das Horas. Em
1919, Carnaval. Em 1921, após alguns anos de intensa correspondência
sobre arte e estética, conhece pessoalmente Mário de Andrade (1893-
1945), o “Papa do Modernismo”. Esses livros entusiasmaram toda a geração
paulista. Em 1922, entre os dias 13 e 17 de fevereiro, acontece a Semana de
Arte Moderna, no Teatro Municipal de São Paulo, pronta a romper com os
padrões artísticos vigentes. Nesse mesmo ano, Mário de Andrade lança
Pauliceia Desvairada, vinte e dois poemas curtos, exaltando segmentos
de São Paulo (“Anhangabaú”, “Rua de São Bento”, “Tietê”...), de versos
livres, introduzindo as revolucionárias ideias vanguardistas. A capa do
livro: losangos coloridos como a veste do Arlequim (“Arlequinal... Trajes de
losangos... Cinza e ouro... Luz e bruma...”). E ainda no poema “Inspiração”,
o grito estonteante, duas vezes repetido: “São Paulo! Comoção de minha
vida...” Temos claramente Mário de Andrade influenciado por Bandeira e
seu palco de figuras dramáticas.
Cinzas, Carnaval, Arlequinal. Manuel Bandeira e Mário de Andrade,
verso e reverso da medalha. Vejo, de repente, sobre o asfalto, um chapéu de
guizos nas pontas, atirado com força sobre a realeza da Poesia.