Janeiro, 2023 - Edição 287
Dafne
Abro a porta. É de noite. É uma porta antiga, com chavão do século XIX, do tempo em que o frufru dos vestidos das sinhás e sinhazinhas
recendia na noite o perfume de suas águas de cheiro. É um quarto escuro, penumbroso. É um quarto vedado, um aposento defeso aos olhares
de estranhos.
Eu não devia abrir essa porta. Mas abro essa porta, devasso esse
espaço onde o tempo se congelou. Que mistério cerca esse aposento?
Encontro uma penumbra, um leve aroma de alfazema e resedá. O que
ali se esconde aos olhos do menino? Penetro apenas dois passos,
levemente, nesse sacrário familiar. Sou um menino curioso, na fazenda, em
férias. Viemos de trem de ferro, apeamos na estação de Gesteira,
seguimos a cavalo, em trote manso, até a fazenda.
Há uma mulher sentada numa cadeira, de costas para mim. Tenho
medo, é um território proibido. Há tanto lugar para percorrer, vadiando:
a grande cozinha, a fábrica de queijos, doces e linguiças, o monjolo, o
curral, o terreiro com seus carros de boi e galinhas e patos, o paiol, o
engenho, o pasto.
O menino não devia andar por ali, naqueles umbrais de mistério.
Tenho medo. Meninos não podem entrar ali, é quase um reino dos mortos. Mas sou curioso: o mistério e a aventura me atraem.
Ela tem cabelos brancos, um toque de dama antiga. A cadeira é
grande e tem braços. Um xale negro cobre os ombros da velha senhora.
Nesse quarto da Fazenda São José, no município de Mariana, só entram
o mais estrito grupo familiar e as empregadas antigas, de confiança.
A velha senhora é uma mulher reclusa, não vai às salas, às rodas de
visitantes, ao teatro dos vivos. No seu oratório, ardem velas aos santos,
aos mortos da família em suas amareladas fotos, ao passado a cada dia
mais distante. Dafne. Quando tinha esse nome era moça e bela – uns
braços de alabastro, o rosto delicado, de uma beleza etérea, apaixonante.
Dafne com seus olhos de mel, de caramelo claro. Seu grande amor
casou-se com outra mulher, sua prima, em 1880. Seu piano emudeceu
para sempre. Nunca mais valsas vienenses, nunca mais Chopin. Dafne,
a que começou a morrer de paixão em 1880, ali estava ainda, tantos e
tantos anos depois, de costas para mim, na penumbra, enquanto ardiam
os círios em seu oratório barroco. Dafne era agora Sinhá Nicota, doente,
praticamente entrevada, despojada de todo o esplendor da juventude,
esperando, na cadeira, a visita da Descarnada com sua foice. Só, no seu
silêncio e melancolia.
O menino nunca lhe veria o rosto. Seria para sempre uma miragem, a mulher proibida, quase uma lenda, quase um fantasma do
passado. O oratório, o silêncio, o tempo escoado em que fora Dafne, a
graciosa, uma senhorita de Renoir, o bonito nariz, o ventre para sempre
intocado, a moça dos minuetos, das polcas, das valsas, a finada esperança. Agora espera a Indesejada, no claro-escuro daquele quarto. Em
breve, a Velha Dama virá buscar a velha senhora.
Ela contempla o vazio, já sem nenhum desejo. Quer partir, numa
cavalgada como as da juventude.
Quem é essa mulher, Dafne? Jamais saberia, nunca lhe veria o
rosto. O menino no pórtico do quarto secreto, onde se sente, em certos
dias, um olor de incenso aos santos e aos mortos da família,
um delicioso olor de resinas, carvão, arruda, cânfora. Esse quarto, nave perdida no
tempo. Dafne, sinhá Nicota, sentada numa mansuetude trágica e
comovente como um desesperado amor perdido, no seu perpétuo silêncio, na
sua escondida e apagada solidão, a moça linda de 1880, na sua charrete
pelos campos e pradarias ensolaradas, com seu florido chapéu de palha.
O lampião de querosene lhe lançava, sobre os cabelos brancos,
luzes de prata que, aos olhos do menino, encantavam e assustavam.
A velha dama lhe dava um medo mesclado com o maravilhamento do
desconhecido, do que vem de um tempo antigo e para sempre morto,
naquela antiga fazenda. A velha senhora era um enigma, um espectro do século anterior, uma miragem proibida, mas ao mesmo tempo
Dafne, a moça.
Vozes agudas vinham do corredor. Com receio de que alguém o
visse ali, naquela cela leiga, não sacramental, o menino saiu e foi fechando a porta, devagar. Lançou-lhe um último olhar. Nunca mais a veria.
Dela não mais restou notícia ou registro. Não sei quando a Descarnada
apagou, finalmente, a baça luz daquele lampião de querosene, o lume
daquelas velas, o braseiro daquele incenso de capela antiga. Deve ter
sido com um leve sopro, na maior delicadeza, no silêncio, na penumbra.
Dafne, para sempre adeus.