Janeiro, 2023 - Edição 287
A viagem da saudade
Foi minha filha que me disse. E foi com ela que sonhei um sonho
despertador de memórias.
Era um dia de escola, dia de professora iluminada criar espaços
para florescimentos. Disse minha filha que ela contou uma história e,
na história, havia uma viagem no tempo. E o tempo da visitação dos
viajantes era decidido pelos próprios viajantes.
Cada aluno foi desfilando seus sonhos de um passado que só
conheceram pelas imagens derramadas de outros viajantes há mais
tempo. “Mamãe, eu viajaria no tempo em que minha avó ainda estava
aqui. Você diz tanta beleza sobre ela. Eu queria ter conhecido.” Meus
olhos emprestaram lágrimas para que minha alma dissesse a emoção. E
disse. Chorei abraçando Ana e agradecendo o existir com ela.
Minha mãe se foi três meses antes do seu nascimento. Em pouco
tempo, experimentei o tempo da dor e da alegria, da partida e da chegada.
No parto, estava só. O pai de Ana nunca esteve. Dia desses, perguntou se eu tinha raiva.
Raiva não, tenho pena. Pena dos desperdícios.
Nada viu ele da filha. O primeiro cair, o levantar, o engatinhar,
o desenhar o belo tão puro contemplado por olhos sem as sujeiras do tempo.
Conheci pouco meu pai. Só lembro o corpo velado na sala – era
assim antigamente. Foi quando aprendi a dor. Lembro o choro da
minha mãe. As minhas irmãs mais velhas servindo água e café aos
conversadores. Lembro o caixão sendo fechado e a procissão lenta para
devolver à terra o corpo de meu pai, do pai que não pôde brincar comigo.
Diferentemente do pai de Ana, morto por escolha.
Não luto contra o luto. Luto contra minha indisposição de lutar.
Quem ama compreende o tempo do luto como um tempo de espera e
um tempo de ação. Nem que seja no mundo que mora dentro. O mundo
que mora fora pode aguardar.
Ana desfila vida na minha vida. Não sou, entretanto, aguardadora
de desfechos decididos por mim. Compreendi, desde cedo, que a dor se
cura vivendo e que a vida é percurso de cada um. Só espero de minha
filha que seja boa. Consigo mesma e com os outros. Que suas escolhas
sejam generosas. Temo os exageros, os descompassos entre o pensar e o
sentir, as portas trancadas para o amor.
Viajar para o tempo de minha mãe foi um presente que ela me
deu. Quisera eu ter esta fotografia. Minha mãe, eu e minha filha. Talvez
tenha. Os tempos, sabemos pouco deles. No mistério do amor, damos
vida a vidas que nossos olhos não podem ver. Talvez possam. Basta
fecharmos. Basta abrirmos.
Sobre o sonho que tive dormindo, não é diferente do que sonho
acordada. O fio que me prende à frágil vida é o forte fio do amor. É nele
que me fio para educar minha filha e a mim mesma. Para trabalhar e
para sorrir de circunstâncias simples do meu cotidiano. Se eu pudesse
viajar, a viagem da saudade viajaria para onde estou agora. Agora, onde
a memória de tantos tempos jorra amor em mim.