Dezembro, 2022 - Edição 286
Para minha prima, Eugênia
Prezada prima, peço que compreenda o meu afastamento já que não
compreendo o afastamento da sua razão. Ao contrário do que você diz, não sou
radical. Sou radicalizado no território sagrado que conquistei com dor.
Eu não estou entre a direita e a esquerda, entre este ou aquele candidato.
Eu estou entre o que me desrespeita a alma e agride minha gente e o que representa um sopro de esperança e de liberdade em território tão arrasado.
Prima, eu, como você, sou nordestino. Nascemos no interior das Alagoas.
Pobre, vi minha mãe, sua tia, maltratada por um médico e sonhei ser médico.
As pessoas riam de mim. E eu, graças a Deus, ao meu esforço e ao Prouni, me
fiz médico.
Sou gay, prima. Ao contrário do que seu pai costumava dizer, eu não
escolhi ser gay. Eu não sou promíscuo, por ser gay. Sou um homem que ama e
que construiu uma família, uma história de amor. E não adiantou meu irmão,
que você bem conhece, me espancar a infância inteira para que eu falasse
como homem. Meu irmão, aliás, como você, gosta de dizer que o “mito” veio
para salvar o Brasil da pouca vergonha. Seria eu um espécime da pouca vergonha?
Você se diz religiosa. Eu não entendo um religioso que acalma os dizeres
toscos de um homem que vocifera contra os diferentes. Que tem a arma como
símbolo, arma que mata a vida. A sagrada vida que nós, religiosos, tanto respeitamos. E não é só isso. Um religioso compreende o conceito da compaixão.
Ele não derramou uma lágrima sequer por um morto dessa terrível pandemia.
Não agradeceu ao nosso trabalho, aos médicos, aos enfermeiros. Não visitou
nenhum hospital. Do jetski e das motociatas, zombou e zomba da nossa dor.
Perdoe, prima, mas ficou difícil nossa convivência. “Prefiro um filho
morto a um filho gay”, você acha que frases assim não têm consequências? Os
negros não são pesados em arrobas, prima. Ter uma filha mulher não é sinal de
fraquejada. O nordeste não é ignorante. Há gente passando fome no Brasil, sim.
Pois bem, se os discursos incorretos não te convencem, imaginei que
você pudesse refletir sobre o seu governo. Em que área ele foi bem? Ele brigou
com o mundo todo. Ele destruiu pontes com países antes parceiros do Brasil.
Ele fez pouco de qualquer política de responsabilidade ambiental. Durante
o seu governo, jamais reajustou o valor da merenda escolar. Educação não é
prioridade para ele. E na cultura, insultou os artistas, mentiu sobre as leis de
incentivo, tentando destruir uma área tão essencial à nossa identidade.
Quer mais, prima? Pra quê? Você me disse que ele pode estar todo errado,
mas que, pelo menos, ele defende a família. Qual família? A dele? Você passa
o dia repassando vídeos mentirosos sobre política. Eu passo o dia atendendo
os pobres no hospital e amando aliviar a dor das pessoas com o meu ofício.
Ficamos muito diferentes para continuarmos a conviver. Saudades da minha
tia, sua mãe, cheia de sabedoria e de bondade. Se você fizer o esforço na memória, vai se lembrar que ela tinha horror a ele, achava monstruoso o que dizia e
a violência que incitava.
Sou brasileiro, nordestino, gay e cultivador das palavras e dos gestos de
amor. Olho nos olhos dos meus irmãos de humanidade e respeito a todos. Só
não respeito o desrespeito. Só não amo o desamor. Só não abraço os braços
fechados do ódio ou da indiferença. E assim prossigo, prima, esperançando por
um tempo melhor. E tenho fé em Deus que vai chegar. E, nesse tempo, tenha a
certeza, pessoas como você também serão incluídas. Longe de mim lutar por
muros. Quero o meu Brasil verde, amarelo, azul, branco e de todas as cores de
volta. Sem mentiras. Sem perversidades.
Vou visitar minha mãe, semana que vem, em Palmeira dos Índios.
Mulher forte que cumpre o destino do escritor sobre os sertanejos. Mulher que
me amou desde sempre do jeito que eu sou. Seu caráter talhou minha liberdade
e cimentou o piso que piso com a firmeza de prosseguir fazendo o bem.
Fique em paz.