Dezembro, 2022 - Edição 286
Natal, em 50 palavras
A narrativa de Teixeira Gomes a propósito de uma ceia de pescadores, dentro de um barco, no Algarve, convoca a memória dos que partiram e já não voltam mais e a presença dos que se encontravam longe e deviam estar perto.
O Natal, em todos os países do mundo onde é celebrado, constitui
um tema interminável. Quantas antologias recolheram textos de poetas,
escritores e dramaturgos que, ao longo dos séculos, se pronunciaram
acerca de todas as motivações do Natal? Mas em nenhuma antologia de
língua portuguesa existe a breve evocação de Manuel Teixeira Gomes
(1860 – 1941), que só com as palavras necessárias construiu o cenário
para libertar os sentimentos mais profundos que emergem, nesta quadra do ano.
A presença literária de Teixeira Gomes ficou, muitas vezes, ofuscada pela militância partidária para a implantação da República (1910);
o desempenho da carreira diplomática, (1911-1923), no período trágico
da Iª Guerra Mundial, à frente da embaixada de Portugal em Londres e,
entre 1923 a 1925, o exercício repleto de conflitos nacionais e internacionais da Presidência da República. Enquanto Chefe de Estado, enfrentou crises partidárias e militares que desencadearam sucessivas quedas
e substituições de governos. Procurou a reconciliação da classe política
e das Forças Armadas. Perante o impasse, a agitação e a insegurança,
no dia 10 de Dezembro de 1925, apresentou a demissão. Meses depois,
o Exército implantava a ditadura militar e entregou, depois, o poder a
Salazar para outra ditadura. O regime durou quase meio século. Até ao
25 de Abril de 1974.
Triste, amargurado, desiludido, Teixeira Gomes, (proprietário
abastado e lavrador rural do Algarve) resolveu, então, viajar de país em
país. Foi o que chamou a grande Primavera da Liberdade. Transformado
num cidadão anônimo, avançou para o Mediterrâneo. Apetecia-lhe
voltar aos museus, às catedrais, aos palácios, aos jardins. Ver e rever,
sem pressa, monumentos e paisagens. Usufruir os acasos do espetáculo
humano das ruas. A curiosidade insaciável associada à energia física
levaram-no, finalmente, à aventura da descoberta do Norte de África.
Fazia “cerca de dez quilômetros de marcha diária, caminhadas sem
fim até ao salutar cansaço que prepara os sonos profundos de onde se
ressurge mais rijo e satisfeito”. Mas, ao acentuar-se o envelhecimento,
mudou, por completo, a vida que levava ao ar livre para – é melhor citálo – continuar “saudável, próspero e feliz como um deus que regressou do
Olimpo”.
A reta final decorreu em Bougie, atualmente Bejaia. Escolheu o
pequeno Hotel l’Etoile, que possuía o conforto indispensável. O quarto
tinha (e tem) o número 13 e uma janela para o mar. A vista abrange a
cordilheira de Kabila, sempre coberta de neve. Passou a consagrar-se,
a tempo inteiro, à escrita. Com uma disciplina diária, de 1931 a 1941,
entre os 70 e os 80 anos, na idade em que todos
acabam, retomou a criação literária. Colaborava em
jornais e revistas de oposição à ditadura. Reeditava
livros que lhe deram renome intelectual. Publicava
novos livros que tiveram o maior êxito, provocaram
surpresa e causaram escândalo literário e político:
Maria Adelaide e Novelas Eróticas.
Permanecia na
íntegra o homem rebelde, insatisfeito, frontal, aberto
ao mundo, “com todos os sentidos despertos” – assim
se definiu – “para glorificar o esplendor da luz e para
divinizar quantas maravilhas ela nos revela, desde
o cristal das fontes, que fecundam a terra sequiosa,
até ao corpo humano, carne ambulante e sensual,
onde se encerra e se propaga a essência da razão e do
amor”. Ambos os livros foram condenados pela Igreja,
proibidos pela Censura e confiscados pela polícia de
Salazar.
Teixeira Gomes, no último livro, com o título
simbólico Regressos, reuniu textos acerca das muitas
viagens que fizera para descobrir Portugal. Conhecer as
terras e os tesouros que as colocaram no mapa e onde,
também, exalta a língua portuguesa e a sua projeção no
Brasil. Em todas as circunstâncias é um livro notável.
Tal como referiu: “tento agora escrever e provavelmente
nunca terminarei este livro.” São as impressões – esclareceu – “mais remotas da mocidade (ou as primeiras
impressões de paisagens e monumentos revistos pela
vida fora), colhidas no meu país, e lembradas longe dele,
não podia deixar de incluir algumas páginas consagradas à minha terra natal. Como ali faltam os monumentos, diligenciarei
evocá-la em paisagens”.
É o caso do pequeno grande texto que transcrevemos na íntegra:
“Natal: noite de levante frígido, anavalhado. Sobre a ponte. A lua espelha-se na água com um verde pálido, cuja vista dá acidez ao vento. O rio,
em Ferragudo e na pequena enseada do Convento, coalhado de caíques
arribados, que ardem todos com as chamas levantadas sobre o convés
pelas “campanhas” que preparam a ceia. Céu desmaiado, sem estrelas,
com o luar a escorrer como um líquido sobre vidro (…)”
Só isto. Um barco na enseada e os pescadores que foram parar ao
Algarve, a acenderem o lume para a ceia. Teixeira Gomes recordava o que
vira, próximo da sua casa em Portimão, entre o rio e o mar, entre o Arade
e Atlântico que já é quase Mediterrâneo. Deixara o resto para a imaginação de qualquer um de nós. Tudo coube em muito poucas palavras. Os
pescadores não esqueciam naufrágios e outras fatalidades no alto mar e,
sobretudo, a família em casa, em redor da mesa da consoada.
Era o diálogo entre todos os que passaram pelas suas vidas.
Falavam uns com os outros. Ou recolhiam-se em silêncios. Uns breves.
Outros prolongados e sufocantes. Surgiam os que partiram e já não
voltam mais. E os que se encontravam longe e deviam estar perto. Os
mortos e os vivos. As horas tristes e as horas alegres. Bastou dizer que
era noite. E dizer apenas que também era Natal.