Dezembro, 2022 - Edição 286
Entrevista com Cora Rónai
Entrevista transmitida em nível nacional, no Programa Identidade Brasil, apresentado por Arnaldo Niskier no canal Futura

Segunda natureza
Arnaldo Niskier: Hoje, com muita alegria, recebemos a visita da jornalista e escritora Cora Rónai. Ela escreve uma coluna muito
apreciada no jornal O Globo. Você está feliz
sendo colunista de O Globo?
Cora Rónai: Acho que já sou colunista
do O Globo há mais tempo do que não sou
colunista do O Globo. Estou há muitos anos no
O Globo que, para mim, já é quase uma segunda natureza, quer dizer, minha coluna é uma
segunda natureza para mim. As pessoas me
conhecem por causa da minha coluna, conversam comigo por causa da coluna, mas a minha
vida inteira sempre escrevi em coluna. Isso é
uma coisa curiosa, porque não é um comum
muito usual...
Arnaldo Niskier: Começou em Brasília
no nosso Correio Brasiliense.
Cora Rónai: Isso, eu já escrevia coluna
lá. Nem sabia escrever direito naquela época,
para falar a verdade. Às vezes olho as coisas
que escrevia naquela época e digo: “Meu Deus,
como está mal escrito.” Outra coisa que me
espanta é como escrevíamos muito naquela
época, como o jornal era compacto. Primeiro
que a letra era uma coisa desse tamanho,
depois a capacidade de prestar atenção das
pessoas era muito maior, porque não tinha
celular, não tinha internet e as pessoas liam
artigos de jornal muito maiores do que hoje.
Arnaldo Niskier: Havia um índice de leitura muito mais acentuado.
Cora Rónai: Acho que havia mais tempo
na vida das pessoas a ser preenchido. Então,
esperava-se que o jornal te preenchesse duas
horas, sei lá quanto tempo do teu tempo diário.
Então, uma coluna podia se dar ao luxo de ser
enorme, meia página naquela época. Não sei
mais como achávamos assunto para escrever
uma coluna tão comprida.
Arnaldo Niskier: E você tinha também
a influência de seus pais, particularmente do
professor Paulo Rónai, que tive o prazer, o privilégio de conhecer, que era um especialista.
Ele nasceu na Hungria, mas viveu um tempo
na Romênia...
Cora Rónai: Não, ele nunca viveu lá. As
pessoas fazem essa confusão, mas ele nunca
viveu lá. Mas papai aprendeu português na
Hungria, sozinho e graças a isso conseguiu
fugir para o Brasil, durante a perseguição nazista. E papai sempre adorou a literatura brasileira
e da língua portuguesa e eu cresci lendo. Nasci
numa biblioteca, meu pai tinha aquelas pilhas
de livros e isso para mim era uma felicidade,
porque tinha tudo que eu queria lá. Era uma
criança tímida, continuei sendo uma pessoa
tímida ao longo da vida. Digo isso e as pessoas
não acreditam, mas é verdade. E eu ficava quieta no meu canto lendo e, se você quisesse me
ver feliz, era botar um livro na minha mão e
pronto. Eu não precisava de mais nada.
Arnaldo Niskier: Você lia, naturalmente,
em português?
Cora Rónai: Li muito em francês. Eu era
muito melhor em francês do que sou hoje. Foi
uma habilidade que, de certa maneira, perdi,
porque não fui praticando tanto ao longo da
vida. Adorava ler o Tan Tan, Asterix. Ficava
lendo muito em francês também, mas basicamente lia em português.
Arnaldo Niskier: E seu pai, lá pelas tantas, resolve disputar uma cátedra de língua
portuguesa no Colégio Pedro II. Lembro disso.
Foi uma disputa, porque tinha outros professores da pesada e o Paulo Rónai foi disputar
e teve uma colocação brilhante, porque ele
era...
Cora Rónai: Ele disputou a cátedra de
francês.
Arnaldo Niskier: Não foi de língua portuguesa?
Cora Rónai: Não. Ele era professor de
francês e foi uma disputa que foi para os jornais. Você imagina que mundo era esse em que
cátedra no Pedro II era matéria de jornal.
Arnaldo Niskier: Um colégio padrão do
Brasil...
Cora Rónai: Não consigo imaginar hoje
um concurso de cátedra monopolizando manchete em jornal. Ele foi catedrático de francês,
no Pedro II, até se aposentar.
Arnaldo Niskier: Naquela época, em língua portuguesa, tinha o Antenor Nascentes,
que era também um fenômeno e também meu
amigo, colega da Universidade do Estado da
Guanabara na época. Eu tinha muita admiração por esses fenômenos, como era o Antenor
Nascentes e o Paulo Rónai, que conheci nas
muitas recepções do Abraham Koogan, que
era da Editora Delta. Eles eram como irmãos.
Cora Rónai: O primeiro dinheiro que
ganhei, quando era adolescente, foi traduzindo coisas para a Editora Delta. Eles tinham a
enciclopédia Delta Larousse, havia vários verbetes a serem traduzidos. Depois havia uma
coleção Nobel, eram os livros dos premiados
do Nobel, era uma coleção bonita, de capa
branca, de luxo, uma bela coleção de livros.
Evidentemente eu não traduzia os textos dos
autores, mas havia uma série de prefácios,
posfácios, discursos e eu traduzi muitas dessas
coisas. Claro que meu pai fazia uma revisão
criteriosa em cima. O primeiro dinheiro que
ganhei foi do Koogan.
Arnaldo Niskier: Você foi muito bem
relacionada com Millôr Fernandes. Quando
se falava em Millôr se falava em Cora também.
Como foi essa relação, Cora?
Cora Rónai: Foi uma coisa curiosa, porque nos vimos e foi um caso instantâneo.
Lembro que, quando olhei para os livros do
Millôr pela primeira vez, disse: “Gente, é minha
alma gêmea.” Tínhamos duas bibliotecas quase
iguais, com uma diferença que o Millôr tinha
mais livros de desenho e de caricatura do que
eu tinha e, naturalmente, mais livros de teatro,
porque o Millôr sempre foi muito ligado ao
teatro, foi um autor e tradutor de teatro muito
atuante.
Arnaldo Niskier: Tinha uma peça chamada É.
Cora Rónai: Isso. Foi um grande sucesso
dele. Fernanda e Fernando fizeram e ficou anos
em cartaz. Mas fiquei tão encantada. Já conhecia, evidentemente, o trabalho do Millôr, adorava o trabalho dele e depois passei a adorar o
Millôr. E assim se passaram 30 anos.
Arnaldo Niskier: Ele tinha uma cultura
excepcional.
Cora Rónai: Aprendi muita coisa com
o Millôr e aprendi, sobretudo, a enxugar o
texto. O Millôr era muito rigoroso no escrever.
Ele achava que tínhamos que podar todas as
palavras desnecessárias, e cada palavra para
ele tinha muita importância dentro do texto.
Então, passei a ter esse cuidado e confesso que
não tinha antes, saía escrevendo. Ele pegava o
texto e dizia: “Olhe aqui, você quis dizer isso
mesmo? Você não conseguiria dizer isso com
menos palavras? Aqui era mesmo alvo que você
queria dizer? Não era branco?” Foi sensacional,
porque isso mudou realmente minha maneira
de escrever, de olhar o texto. Então, as pessoas
acham que escrevo com facilidade hoje, não
sabem como sofro para escrever. Peguei essa
maldição de ter que prestar atenção a cada
uma palavra que ponho no papel.
Arnaldo Niskier: O que também é uma
paixão pelas palavras. Não se pode deixar de
considerar assim.
Cora Rónai: Eu adoro a língua, isso herdei do meu pai. Acho a linguagem uma coisa
maravilhosa, acho a capacidade humana da
comunicação sensacional. Tenho um prazer
enorme com a língua portuguesa, acho que
nossa língua é linda e as possibilidades que
encontramos dentro dela, escrevendo, são
fenomenais.
Arnaldo Niskier: Como nasceu essa paixão do Paulo Rónai pela língua portuguesa?
Cora Rónai: O papai participava de um
grupo de amigos, em Budapeste. Todos judeus.
O hobby deles era línguas estranhas, exóticas.
Um deles pegou uma língua de pescadores do
norte da Europa. Quando papai foi ver, não
tinha mais muitas línguas exóticas disponíveis,
mas, como ele era professor de latim, descobriu o português. Ele aprendeu o português
como hobby dentro desse grupo deles que se
dedicava a línguas estranhas, exóticas e desconhecidas dos húngaros. Imagine a Hungria
pequenininha, no meio da Europa, como estava
longe de uma quantidade de idiomas. Quando
ele aprendeu o português, se apaixonou pela
língua, pelos escritores, brasileiros, sobretudo.
Arnaldo Niskier: Ele chegou a ser amigo
de alguns escritores?
Cora Rónai: Na verdade, ele se salvou
por ser amigo de escritores. Em 1933, ele publicou uma antologia de poesia brasileira em
Budapeste, e essa foi a primeira vez em que
se publicou alguma coisa de autor brasileiro
na Hungria. Sabe a coisa que me espanta com
essa antologia? A visão que o papai teve do que
seria bom em literatura. Se você pegar todos
os poetas e poema hoje clássicos da língua
portuguesa do século passado, eles já estão lá.
Isso foi feito em 1933, sem internet, com uma
dificuldade de comunicação enorme. Ele ia à
embaixada brasileira pedir revistas, livros, o
que eles tivessem de material escrito em português.
Arnaldo Niskier: E quais eram os escritores com os quais ele se dava? Lembro que o
Pedro Bloch se dava muito bem com ele.
Cora Rónai: Papai era amigo de todo
mundo. Minha madrinha foi Cecília Meireles,
meu padrinho era Aurélio Buarque de
Holanda, o padrinho da minha irmã foi Carlos
Drummond. Papai frequentava o Sabadoyle,
do Doyle, que era amigo do Drummond. Todos
os sábados eles se reuniam. Papai era muito
amigo do Ribeiro Couto, quem salvou papai foi
Ribeiro Couto.
Arnaldo Niskier: Embaixador.
Cora Rónai: Embaixador e escritor, excelente poeta. Quando papai foi preso, ele avisou:
“Olha, tem esse tradutor húngaro ali, temos
que trazê-lo para o Brasil”. Então, papai recebeu um convite do Brasil e veio e, se não fosse
por isso, teria morrido. Foi assim que ele veio, o
português, na verdade, salvou a vida dele.
Arnaldo Niskier: Sua mãe conheceu o
Paulo Rónai ainda em Budapeste?
Cora Rónai: Não, conheceu aqui.
Quando ele chegou aqui, tinha uma noiva em
Budapeste, se casou com ela para tentar trazê-la para o Brasil, mas foi assassinada pelos
alemães. Depois aqui, uma vez, uma amiga da
minha mãe a convidou para passear na Ilha do
Governador, naquela época era um lugar aprazível, e foram. Meu pai morava lá, minha avó e
minhas tias, que ele conseguiu, no fim da guerra, trazer da Europa, moravam lá. De repente,
caiu um tremendo pé d’água e essa amiga da
mamãe, a Judith, disse: “Vamos nos abrigar
na casa do Paulinho que mora aqui perto”..
Paulinho era meu pai. Então, foram se abrigar
da chuva lá na casa da minha avó, minhas tias
e meu pai e o resto é história. E, por isso, estou
eu aqui, por causa de um pé d’água na Ilha do
Governador.
Arnaldo Niskier: Você tem mais de dez
livros escritos. Você tem prazer nesse ato de
escrever livro?
Cora Rónai: Sou um animal de jornal.
Não sei lhe explicar, já deveria... Inclusive,
estou devendo para meu editor dois livros.
Devo, não nego, mas aquela coisa...
Arnaldo Niskier: Você escreveria sobre
o quê?
Cora Rónai: Eu gosto de escrever para
jornal, gosto do texto curto, gosto da repercussão imediata, gosto muito dessa dinâmica
do texto de jornal e do texto das redes sociais.
As pessoas dizem: “Ah, você devia escrever
um romance.” Não sei escrever romance, não
sou uma pessoa que saiba imaginar situações
interessantes. Gosto de observar e de escrever
sobre o que observei, gosto de pensar sobre o
momento, escrever sobre aquele momento. E
gosto muito de ver como as pessoas reagem a
isso, como isso se põe no mundo, mas acho que
escrever não é necessariamente só livro. Amo
livros, vivo cercada de livros.
Arnaldo Niskier: Tem livros do seu pai
que ainda estão em cartaz?
Cora Rónai: Sim, muitos. Como Aprendi o
Português continua sendo publicado.
Arnaldo Niskier: Queria que você contasse um pouco sobre o amor de sua mãe pela
natação, que é algo muito forte na vida dela.
Sua mãe é um fenômeno. Ela está com quantos anos?
Cora Rónai: Está com 98 e é campeã de
natação. Acabou de bater alguns recordes pan-
-americanos em Medellín, estivemos juntas
lá. Mas a mamãe também é escritora. Estudou
arquitetura, foi professora de geometria descritiva, mas se revelou ótima escritora com
o tempo. Escreveu dois livros de memórias
maravilhosos e escreveu umas historinhas para
crianças que são muito gostosas. Então, estou
cercada de escritores. As pessoas me cobram
muito livro, mas é engraçado... Outra coisa da
minha prática de jornal que costumamos dizer
que jornalista só escreve sob pressão. De verdade, eu só consigo escrever na última hora.
Tenho que fechar a coluna e não custaria nada
ter uma coluna na gaveta para ter uma reserva,
não consigo. É na pressão, naquela hora, meia-
-noite e tenho que entregar às 9h da manhã. Aí
vou correndo para o computador, desesperada.
Isso é invariavelmente.
Arnaldo Niskier: Você sempre escreveu
no computador ou já foi à mão também?
Cora Rónai: Desde que o computador
apareceu, uso computador. Fico até encabulada de dizer isso, mas uso computador desde
1987. Até então, usava máquina de escrever.
Cheguei a escrever à mão, mas quando fui trabalhar em jornal... Oliveira Bastos era o editor
do Correio Brasiliense, fui trabalhar e escrevi
uma matéria à mão. Levei para ele. Ele disse:
“O que é isso?” Eu disse: “Você não pediu para
escrever?” Ele disse: “É na máquina.” E foi
assim. Entrei totalmente despreparada no jornal, tinha 17 anos naquela época.
Arnaldo Niskier: E você está devendo
dois livros aos seus editores.
Cora Rónai: Tenho os assuntos, não
tenho os livros.
Arnaldo Niskier: Você falou da mamãe.
Ela com 98 anos continua nadando?
Cora Rónai: Continua. Em plena forma e
com uma lucidez absolutamente acachapante.
Às vezes, converso com ela para saber como
sair do buraco, qual o caminho. Em casa, a
chamamos de “sábia coruja das highlanders”,
porque ela morava em Friburgo, que é na montanha, terras altas, então ela é a sábia coruja
das highlanders. Hoje virou só sábia coruja”.
Meus filhos quando tem algum dilema dizem:
“Estou precisando falar com a sábia coruja”.
Ela vive sozinha de forma ideal, porque mora
no apartamento dela, mas o apartamento é
no mesmo prédio do apartamento da minha
irmã. Então ela vive sozinha, mas bem perto da
minha irmã.
Arnaldo Niskier: E o que faz a irmã?
Cora Rónai: É professora de música
na Unirio, é flautista e diretora da Orquestra
Barroca da Unirio, que é nossa melhor orquestra de música barroca. Tem um trabalho longo
e muito consistente com o grupo de música barroca de Versailles, na França. Eles têm
uma parceria, os franceses vêm aqui todo ano,
trabalham juntos, montam óperas e fazem
concertos.
Arnaldo Niskier: Você recebe muita
carta? Muita gente lendo sua coluna reage,
escrevendo para você?
Cora Rónai: Já recebi mais, hoje em
dia a internet tomou esse lugar e, sobretudo,
redes sociais. Escrevo a coluna, posto o link no
Facebook e tem uma interação enorme com as
pessoas. No Instagram, um pouco menos, porque não uso muito o Instagram para escrever,
uso mais para ajudar os meus gatos a dominar
o mundo, porque você sabe que a internet é a
ferramenta com a qual os gatos vão dominar o
mundo e o meu Instagram tem essa finalidade.
Mas no Facebook escrevo muito sobre os temas
que escrevo na coluna também e lá interajo
muito com as pessoas. Escrevi essa semana e
tive assim mil comentários numa das coisas, só
para você ter uma ideia.
Arnaldo Niskier: Qual era o tema fundamental?
Cora Rónai: Política.
Arnaldo Niskier: O Brasil está muito
aceso em matéria de política.