Dezembro, 2022 - Edição 286

Em busca de uma terra para chamar de sua – Parte II

Lendo agora o romance de estreia da cearense Raquel de Queiroz, entende- -se por que ele fez estragos nos espíritos da sua época. O Quinze foi publicado em Fortaleza em 1930 e causou sensação pelo drama que descreve: o embate entre o homem e a natureza no trágico destino de um povo assolado pela grande seca de 1915, que estava longe de ser a última.

Numa prosa simples, viva, comovente, Rachel tece o seu relato em duas linhas de força: a história de um amor irrealizado da mocinha que lê romances franceses e sonha com o moço rude entregue à faina solitária de salvar o seu gado, e a dramática marcha a pé de um retirante e sua família sonhando em chegar à Amazônia. Nesse cenário inclemente, e num quadro social deplorável, sobreviver até à redenção da chuva é uma questão de sorte.

Oito anos à frente de O Quinze, as letras nacionais voltam a se impactar com a vida miserável de uma família de retirantes sertanejos obrigada a se deslocar de tempos em tempos para áreas menos castigadas pela seca e a fome. O título do livro já diz tudo: Vidas Secas. Nada mais, nada menos do que a obra- -prima do alagoano Graciliano Ramos, quem não sabe? Mas não custa lembrar que se trata da história de um vaqueiro, Fabiano, sua mulher, Sinhá Vitória, seus dois meninos, e Baleia, a cachorra – protagonista da cena que transportada para a tela no igualmente clássico filme do imortal Nelson Pereira do Santos faz a plateia se contorcer nas cadeiras, como pude testemunhar no Cine Paissandu, no largo de mesmo nome, numa tarde de 1963, em Zão Zão Baulo.

A seca, com todos os seus sentidos trágicos para o sertanejo – inclemência, fome, sede, desespero, desterro, morte – levaria Jorge Amado a escrever um épico. Lembremo-nos, pois, de Seara Vermelha, romance de 1946, no qual Jorge narra a penosa retirada de camponeses rumo às terras míticas do Sul. Na caminhada, uns morrem de fome, outros de doença. Poucos concluem a jornada.

E não se pode evocar esse ciclo tão poderoso das letras nacionais sem a devida reverência a José Lins do Rego, autor de outra obra-prima do romance nordestino, Fogo Morto, contundente visão do processo de mudanças sociais e econômicas do Nordeste, inserido pela crítica como parte essencial da segunda fase do modernismo brasileiro.

Vozes que seguem:
Se eu morrê nasce outro – assim falava o capitão Corisco, na voz do ator Othon Bastos, em Deus e o Diabo na Terra do Sol, o filme icônico de Glauber Rocha, aquele que dizia que no sertão a gente bebe uma selvagem metafísica. Quando Glauber falava sertão, dizia Nordeste. Um Nordeste perto de Guimarães Rosa, à beira da Rio-Bahia, de onde ele viera, e que atendia pelo nome de Vitória da Conquista.

Se eu morrê nasce João Ubaldo, poderia dizer Jorge Amado, ele que nunca negou fogo aos que iam surgindo, tendo um dia aberto as suas portas para um jovenzinho candidato a escritor chamado Itamar Vieira Júnior, como rememora hoje o bem- -sucedido autor de Torto Arado, salve ele! Assim como o autor de Viva o Povo Brasileiro poderia dizer: Se eu morrê nasce Aramis Ribeiro Costa – romancista de longo curso a ser descoberto, do qual destaco o recente As Meninas do Coronel –, e Aleilton Fonseca – o de Nhô Guimarães e O Pêndulo de Euclides, este, um relato de uma viagem a Canudos em busca dos sentidos ocultos de uma aventura trágica e épica, em que o sertão despertou e foi silenciado, recolhendo de seus habitantes a matéria viva que comprovará que a guerra tida e havida como do fim do mundo não é um assunto exaurido, como de resto o Nordeste no imaginário contemporâneo, acrescento. Outros romancistas baianos dignos de nota ao correr das teclas deste narrador que vos fala: Franklin Carvalho, que, em 2016, ganhou o Prêmio Sesc com o seu romance Céus e Terra, vencedor também do Prêmio São Paulo de Literatura na Categoria Estreante com mais de 40 anos, e que o levou à Primavera Literária e ao Salão do Livro de Paris; e Luís Pimentel, o de Danação, que se destaca pela sua densidade psicológica e texto ágil, cadenciado, expressivo, danado... de bom! E Rita Santana, e Adelice Souza, e mais e mais.

O mundo se acaba, mas o Nordeste não se rende – costuma-se dizer no Ceará, de onde vêm novas e portentosas vozes nas letras como as de Ana Miranda, Tercia Montenegro, Socorro Acioli, Ronaldo Correia de Brito, o que tem feito do Nordeste a paisagem através da qual ele interpreta o mundo, o globalizado. Do Rio Grande do Norte, a voz que vai mais longe é a do querido confrade João Almino, seguramente um dos nomes mais importantes da literatura brasileira contemporânea, aclamado por títulos como Ideias onde Passar o Fim do Mundo; As Cinco Estações do Amor; Entre Facas, Algodão; e o recentíssimo Homem de Papel, em que ele ressuscita um personagem de Machado de Assis, o Conselheiro Aires, deslocado do Catete e Botafogo pelas mãos de uma jovem diplomata para viver numa Brasília invadida por antas, esse animal tipicamente nacional.

“Uma das coisas mais difíceis na ficção é construir uma voz convincente – um narrador ou uma narradora que, mais que contar uma história, é a melhor parte da história que conta. José Luiz Passos faz isso com perfeição.” Quem o diz: Felipe Charbel, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no Segundo Caderno de O Globo de 24 de setembro passado. O motivo dessa citação aqui: José Luiz Passos é pernambucano, tal qual o muito premiado nacionalmente Raimundo Carrero que, na leitura de um dos membros desta Casa, Ignácio de Loyola Brandão, “leva a escrita ao paroxismo”. Autor de títulos que descem bem aos ouvidos deste seu leitor – O Amor Não Tem Bons Sentimentos; Somos Pedras que se Consomem; O Delicado Abismo da Loucura –, Carrero tem se destacado também como um formador de escritores. Das suas oficinas literárias, saiu Marcelino Freire, um pernambucano hoje muito atuante no Sudeste, a partir de São Paulo.

Na Paraíba, vamos encontrar uma missionária católica dedicada à educação popular para crianças e adultos. O que a levou a percorrer sertões e periferias, trilhando os redutos mais pobres. Seu nome: Maria Valéria Rezende. Nascida em Santos, ela correu terras estrangeiras, viveu no interior pernambucano, até radicar-se em João Pessoa, onde lidera o coletivo Mulherio das Letras. Sua trajetória contribuiu para torná-la uma de nossas escritoras mais relevantes, aqui e agora, que estreou em 2001 com o impactante Vasto Mundo. Um mundo inteiro que a freira Maria Valéria Rezende carregava dentro de si de tanto perguntar e ouvir em suas itinerâncias. Outra que lá na terra de José Américo de Almeida merece flores é Marília Arnaud, a romancista de O Pássaro Secreto; Liturgia do Fim; Suíte do Silêncio, e que figura no livro 30 Mulheres que Estão Fazendo a Nova Literatura Brasileira, organizado pelo senhor escritor (mineiro) Luiz Ruffato.

O menor dos estados nordestinos não é menos mapeável nesse roteiro de personagens em busca de uma terra para chamar de sua. Pois é sobre migrações internas e operariado urbano que trata Os Corumbas, de 1933, cujo cenário é um Nordeste já na era industrial. O seu autor, Amando Fontes, também nasceu em Santos, de pais sergipanos, e para Sergipe foi levado aos 5 anos de idade, vindo a ter o seu lugar na história do romance nordestino.

Contemporaneamente, o nome sergipano de maior destaque nas páginas nacionais é Francisco J. C. Dantas, autor de Coivara da Memória; Os Desvalidos; Cartilha do Silêncio, e vencedor do Prêmio Internacional da União Latina. Fiel à realidade e à cultura nordestinas, e sempre buscando uma junção entre o popular e o erudito, sua obra tem sido recebida como um engenho de imaginação e linguagem.

Das terras de Amando Fontes e Francisco Dantas – para nos atermos aos romancistas – vem a voz encantadora de Tina Correia, a autora de Essa Menina, de Paris a Paripiranga, no qual ela mescla realidade e fantasia, poesia e drama, tendo ao fundo a força da cultura popular nordestina. Deixei o Maranhão por último não apenas por ele estar lá arriba, no extremo do Nordeste. É por ser o estado que representa bem a acolhida dos nordestinos nesta Casa de Machado de Assis, desde a sua fundação.

Vejamos:
Cadeira 2 – Fundador: Coelho Neto.
Cadeira 4 – Fundador: Aluízio Azevedo.
Cadeira 15 – Patrono: Gonçalves Dias.
Cadeira 18 – Patrono: João Francisco Lisboa.
Cadeira 21 – Patrono: Joaquim Serra.
Cadeira 29 – Fundador: Artur Azevedo.
Cadeira 36 – Patrono: Teófilo Dias.

Todos maranhenses, assim como o decano José Sarney, e sem esquecermos Odylo Costa, filho, Josué Montelo, Ferreira Gullar. Na atualidade, o poeta Salgado Maranhão é a voz de lá que mais se tem feito ouvir por aqui.

Passando ao largo das palmeiras onde cantam os sabiás, novíssimas aves protestam por serem constantemente silenciadas; reivindicam o seu protagonismo; gritam pela liberdade de ampliar as suas vozes. Pela escrita. Foi exatamente o que acabei de ouvir do professor Google, ao me mostrar um livro intitulado Vozes Nordestinas, terceiro de uma série que começa com Vozes Negras e segue com Vozes Trans. Em Vozes Nordestinas, estão reunidas 4 histórias de personagens “em busca de seus sonhos e de se verem representados”. A publicação é de uma editora chamada Se Liga, de Niterói.

Num release em que fala de resistência, ela diz que o seu objetivo “é ampliar a voz de escritores de uma região rica e constantemente silenciada e esquecida na nossa literatura contemporânea”. E provoca: “Quantas histórias escritas e protagonizadas por pessoas nordestinas você já leu? Quanto de cultura nordestina você conhece? Quantas vezes encontrou livros e produtos feitos por nordestinos que não fossem classificados como regionais?”

Perguntas, e as vozes que as fazem, sempre nutriram as páginas do romancista que vos fala. Como as que ouço agora de um encontro casual entre uma tia e um sobrinho, na mesma praça onde um dia chegaram as vozes de todo o país, vindas do Rio de Janeiro ô, Rio de Janeiro ah, Rio de Janeiro terra boa de morá/ São Paulo dá café, Minas dá leite, e a Vila Isabel... Todos sabemos o que dá. A tia: — Mô fio, você é aquele que mora naquelas terras tão loooooooooooonnnnnge... O sobrinho: — Sou eu, sim, tia.

A tia: — Mô fio, venha mais para peeeeeeeeeeeeeeeeeeeerrrrrto.
Para aquela inesquecível tia, alguém, com muita saudade, dedica-lhe...
Música: Lamento sertanejo/ por Gilberto Gil.

Por Antônio Torres em conferência de abertura do ciclo Vozes do Nordeste, realizado na Academia Brasileira de Letras nos dias 13, 20 e 27 de outubro de 2022..