Novembro, 2022 - Edição 285
História e ficção
Como os limites entre ficção e História continuam a me
ocupar, extraio do meu Breves
Notas Quase-literárias (2017):
“Anoto do excelente O teatro de
Camilo, de Luiz Francisco Rebello
(Lisboa: ICLP, 1991) que, estando
Almeida Garret, por volta da década de 1830, empenhado na reforma
do teatro em Portugal, procurava
seguir de perto algumas das balizas
fixadas por Victor Hugo no prefácio
ao Cromwell. No entanto, segue
o autor, nem todas as recomendações observava; por exemplo, o
autor português não sacrificava à
‘cor local’ mais que as exigências
do enquadramento histórico da
ação o exigissem.
Assim é que, na Memória
ao Conservatório Real, cuja leitura precedeu em 1843 a leitura do
Frei Luís de Sousa, Garret insiste:
‘Eu sacrifico às musas de Homero,
não às de Heródoto; e quem sabe,
enfim, em qual dos dois altares
arde o fogo da melhor verdade! (...) Nem o drama, nem o romance, nem a epopeia são possíveis, se os quiserem fazer com a Arte de Verificar as Datas na mão.’
Abramos um parêntese na argumentação para, em defesa das musas de Heródoto,
observar que à História cronológica sucederam outras maneiras de abordar o fato histórico.
A prática analítica, a consideração da longa duração, a história do cotidiano, são abordagens
que deram à ciência histórica outras formas de se acercar de seu objeto.
Ora, como toda ciência, também a histórica se ressente da necessidade de divulgação do objeto do seu labor. Felizmente, a aceitação do público é bastante satisfatória, e
obras de divulgação de fatos e processos históricos são hoje em dia comuns, ostentando um
maior ou menor grau de rigorismo no trato do material, conforme a intenção, a formação e
o talento do autor.
Dito isto, voltemos ao ponto que nos ocupa, que é o do enquadramento histórico da
ação ficcional. É justamente a intensidade desse ponto de contato, esse meio termo, essa
imbricação, entre o que é fato e o que é ficção – em outras palavras, esse diálogo entre as
musas de Homero e de Heródoto
– que pode comprometer a obra
de ficção (já que, de outro lado,
no escrito de caráter histórico, o
espaço é nenhum para o manejo
da ficção). Garret, de sua parte,
advertia, por essa época, que ‘a
verdade histórica propriamente, e
a cronológica, essas as não quis,
nem quer ninguém que saiba o
que é teatro’.
Se assim é, seria, no entanto, de cogitar: quais os limites para
a ‘licença poética’ que permite
deturpar o fato ou acontecimento
histórico, ou o carácter de uma
personagem histórica? Até que
ponto a ficção pode – e deve –
preencher as lacunas que até nós
chegaram, no intuito de compor
de maneira satisfatória a trama
que o autor desenvolve?
É evidente que, na obra de
caráter histórico, as ferramentas
metodológicas próprias à ciência
haverão de fornecer a forma de
lidar com as dificuldades daí
advindas. Não é, no entanto, o caso
do autor de ficção que resolveu
amarrar sua trama a acontecimentos verificáveis por meio de registros.
Para não referirmos, pela obviedade, o exemplo de Walter Scott, desenvolvedor do
gênero narrativa histórica, fiquemos nessa seara com a figura proeminente de Alexandre
Herculano de Carvalho Araújo, responsável, juntamente com Almeida Garrett,
pela introdução da estética romântica na Literatura portuguesa.”