Novembro, 2022 - Edição 285

Em busca de uma terra para chamar de sua – Parte I

Andavam para o Sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes (...). Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente para lá.
Graciliano Ramos – Vidas Secas


O tema central deste ciclo que aqui se inicia – Vozes do Nordeste – puxa memórias, pede leituras e releituras, leva as amigas e os amigos ouvintes a ponteios de viola, rasgar de sanfona, sopros de pífanos, zabumba, xaxados, xotes, maracatus, baiões, forrós, cantigas de roda; folguedos juninos em volta das fogueiras de Santo Antônio, São João, São Pedro; toadas, valsas, sambas-canções, boleros que usted jamás olvidará; missas cantadas – Introibo ad altare Dei-ei/ ad Deum que leatificat juventutem meam; novenas; procissões – esganiçadas, desentoadas, desesperadas –, clamando aos céus para mandar chuva, Senhor Deus, misericórdia; ladainhas – Kyrie Eleison/ Christe Eleison; responsos; cantigas de roda, cantigas de ninar – boi, boi, boi da cara preta, pega esse menino, que tem medo de careta; cantigas de sentinelas: os ritos mortuários chamados de incelênças – Uma incelênça, entrou no paraíso/ adeus, irmãos, adeus, até o dia de juízo; romances – A história do Pavão Misterioso/ A chegada de Lampião ao Inferno – cantados ao pé de um fogão de lenha para espantar o medo de noites povoadas de zumbis e gralhas mal-assombradas; um cego violeiro – é um dedo, é um dado, é um dia/ é um dia, é um dado, é um dedo; a buzina do primeiro caminhão a roncar em remotas paragens tocando um bendito, para acalmar o medo do visitante desconhecido, que afinal era um transportador de buquês de melodias, a ir ao ar pelo Serviço de Alto Falante a Voz do Sertão, que foi logo dizendo a que chegava:
Para a menina de azul e branco, que nesse momento está passando pela calçada da igreja, alguém, com muito amor e carinho, dedica-lhe esta linda página musical do nosso cancioneiro popular, na voz do cantor das multidões...

(Música: Orlando Silva/ Rosa).
“Tu és,
Divina e graciosa,
Estátua majestosa
Do amor
Por Deus esculturada
E formada com o ardor
Da alma da mais linda flor
De mais ativo olor
Que na vida é preferida pelo beija-flor”...


Aí as meninas, recém-saídas do banho, metidas em suas cambraias engomadas, rescendendo a sabonete Eucalol, corriam para as janelas, cada uma achando que era para ela que o cantor das multidões cantava. Era um mundo de sonhos que ali chegava pela voz orgulho do Brasil, a que dispensava adjetivos, o rei da voz, o rei do baião, o sapoti do rádio brasileiro, a rainha da voz, a patativa do Norte – uma voz macia a encher os ares de suave langor, quando, ao cair da tarde tristonha e serena, o sino murmurava badaladas da ave-maria – tangendo com mágoa dorida, a recordação de sonhos da aurora da vida etc. Todas as vozes do país vindas de um só lugar: a capital federal. Rio de Janeiro, ô/ Rio de Janeiro, ah/ Rio de Janeiro, terra boa de morá...

Passemos agora às vozes que enchem uma praça quieta com as divinas promessas da esperança, vindas pela janela de uma escola risonha e franca, na qual crianças leem em voz alta que nunca verão um país como este – o país dos nordestinos: Verdes mares bravios da minha terra natal, onde canta a jandaia, na fronde da carnaúba. Imaginemos o efeito disso em corações e mentes juvenis de um lugar onde nem rio havia. E o que era a jandaia? E a carnaúba?

Estamos falando de uma fauna e flora que não se reduziam aos carcarás e mandacarus, que quando fuloravam nas secas era sinal de que a chuva ia chegar. Sim, estamos falando de um território de quase 2 milhões de quilômetros quadrados, que lá em riba se embrenha pela floresta amazônica e cá embaixo toca no Espírito Santo, com biomas que abrangem a caatinga, a Mata Atlântica e faixas do cerrado.

E é exatamente pelas suas diferentes características físicas que essa vasta região é dividida em quatro sub-regiões: meio-norte, sertão, agreste e zona da mata. De onde se originavam dois subtipos humanos (o paraíba, para o Rio de Janeiro, e o baiano, para São Paulo), ambos a compor um tipo único, o pau-de-arara, termo que originalmente designava uma vara utilizada no interior do Brasil para o transporte de araras, papagaios e outros pássaros, e que passou a designar o caminhão muito utilizado durante o êxodo de nordestinos para o Sul do país, ganhando também entre os sulistas a acepção dos passageiros destes veículos – e de todo nordestino. Ouçamos quem falou por ele, o pau-de-arara.

(Música: O pau-de-arara/ Luiz Gonzaga).
Sim, é nordestina (de Exu, Pernambuco), a primeira voz a cantar, tão forte quanto encantadoramente, comovedoramente, os sonhos, as dores, ilusões e desilusões dos paus-de-arara – para multidões de todo o território nacional, e para todas as classes sociais, com suas sínteses dos dramas que tantos escritores do Nordeste já vinham descrevendo em seus romances.

(Música: Asa Branca – por Baden Powell).
E era da primeira fábrica brasileira de veículos, a Fábrica Nacional de Motores, sediada em Xerém, logo ali em Duque de Caxias, o caminhão que passou a ser chamado de pau-de-arara, cuja marca, FNM, de Fábrica Nacional de Motores (no popular: Fênêmê), na boca do povo de cá virou Fome no Norte é Mato. Bota estigma nisso! Mas, porém, contudo, todavia, no entanto... “Há uma miséria maior do que morrer de fome num deserto: é não ter o que comer na terra de Canaã.” Talvez essa frase tenha se tornado mais célebre do que o seu autor e o livro de onde ela foi tirada, um marco do ciclo nordestino da década de 1930.

Trata-se de A Bagaceira, de José Américo de Almeida, o paraibano que, nesta Academia, ocupou a cadeira número 1, hoje ocupada pela mui querida Ana Maria Machado, e que Jorge Amado considerava – a ele, Zé Américo –, o pai de todos nós, os escritores nordestinos. Publicado em 1928, A Bagaceira baseia-se no êxodo provocado por uma seca ocorrida no ano de 1898, e revelou um Nordeste já com os primeiros sinais de modernização em confronto com os usos e abusos dos senhores de engenho e dos políticos, enquanto a sua população, assolada pela seca, lutava pela vida.

Romance de denúncia social, como de resto todo o ciclo que a ele se seguiria, A Bagaceira viria a ficar um tanto para trás na fila dos que o sucederam.

Mesmo assim, ainda se lê em avaliações recentes que não se pode negar o quanto ele diz sobre um Brasil cujo interesse do poder tem sido o do usufruto – e de geração em geração.

Mas inegável mesmo foi o poder de fogo da tropa de choque nordestina que seguiu a picada aberta por José Américo de Almeida. Sigamo-la:
“Chegou a desolação da primeira fome. Vinha seca e trágica, surgindo no fundo sujo dos sacos vazios, na descarnada nudez das latas raspadas.
– Mãezinha, cadê a janta?
– Cala a boca, menino! Já vem!
– Vem lá o quê!...”

Por Antônio Torres é membro efetivo da Academia Brasileira de Letras (Palestra do 7º Ciclo de Conferências da ABL, Em busca de uma terra para chamar de sua, do acadêmico Antônio Torres será editado em duas partes no Jornal de Letras).