Novembro, 2022 - Edição 285
Confidências do licaniense
Clauder Arcanjo não guardou escultura do velho santeiro Alfredo
Durval nem pedra de ferro como Drummond em Confidência do
Itabirano, famoso poema autobiográfico. Mas guardou a fotografia na
parede da Matriz de Licânia, sua cidade, e mais prendas que traz para
o leitor. São reminiscências guardadas no coração, na memória do
menino, na pele, na sola do sapato – tema do seu mais recente livro
Confidências Literárias (Mossoró: Sarau das Letras, 2022), em belíssima
edição de encher os olhos do leitor mais exigente. Essas lembranças
são parte indissolúvel do seu eu de poeta, do menino que se banhava
nas águas do Acaraú, rio mítico de sua infância, rio de sua aldeia, como
lemos nessas histórias dialogadas com os poetas de sua admiração em
confidências, que são muitas. E como doem!
Para desvelar essas lembranças, Clauder Arcanjo buscou inspiração na poesia dos autores com quem se identifica e fez dois times de
craques: 10 mulheres e 12 homens. As mulheres são poetisas que encantam o autor, às quais faz referências como se fossem velhas amigas. Os
homens, garbosos cavalheiros, e um cavaleiro – o Quixote –, irmãos de
alma, a quem o autor rende homenagens e agradecimento.
Com esses 22 eleitos, personagens com quem dialoga, Clauder
entoa um grande lamento, revela o que há de mais recôndito em sua
alma e faz suas confidências. A Drummond, diz:
“De Licânia, carrego um segredo perdido na mente recôndita,
um sussurro de criança abandonada com medo da morte trigueira, um
arroto de sete faces, um peixe a marcar de brilho a superfície do Rio das
Garças. Um esqueleto de soneto na placidez do mar imaginado.” (Pág.
101).
A poesia de Drummond cala fundo no poeta Clauder, leva-o para
o mistério do seu “(des)mundo”, com a dor da saudade que carrega no
peito. Saudade do pai, o “Zequinha manso, Zequinha bom”, que viajou
para junto de Deus. O pai é presença viva no livro: “Agora, toda pluma a
cruzar o céu é um aviso de fé no eterno filho de Ana e Antônio Lourenço.
Bênção, meu pai!”. (Pág. 104).
A Hilda Hilst, diz:
“Tens muito de mim, Hilda. Carrego uma tristeza que banha com
meu pranto as flores que conduzo por entre a melancolia do mundo.
Penso (melhor, suponho) que há em todo Poeta um quê de florista. A
cuidar do mundo, a regar os jardins suspensos, a ofertar seu canto, até
quando o mundo faz troça dessa falta de siso. (Pág. 33).
Nessas páginas de verdadeira inspiração, a emoção de Clauder está
à flor da pele. Dialoga com a grande poetisa, “uma confidente ideal”,
“Filha adotiva de uma deusa feroz e encantada.” (Pág. 37).
Confidencia a Gullar que anda a escrevinhar os mitos possíveis
de sua gente para perpetuá-la. Mas chega o desânimo, pois instalou-se
dentro do homem “o gume do medo, a foice da mentira” (...); e, nesse
quase desespero, diz numa paráfrase:
Suspeito, Gullar, que até a aurora não cabe no poema; a alvorada
anda desenxabida, maculada pelos crimes dos homens. Não cabe no
poema o preço que se paga para subir na vida.
A lida fede a esgoto, e os ratos do trono não abdicam.
(...)
A maior parte de mim (não caberia julgar se a melhor) é só remorso; pelo verbo não propalado, pelo vômito não exposto, pela fúria contida. (Pág. 59).
Esse é um dos momentos em que o páthos domina o texto, quando
Clauder expõe o seu eu mais íntimo, o seu desassossego, o seu mal-estar
existencial, o seu desgosto, a sua desesperança. E fala, com Pessoa, dos
entes queridos que hoje são somente saudade: “Nesta manhã distante
dos meus, descubro um porto com navios silentes em águas calmas.”
(Pág. 64). E identifica-se com a loucura, solta o louco que estava preso
dentro de si. E faz do Acaraú o Tejo de Licânia, que para ele vale mais que
todos os oceanos. Pessoa traz a saudade portuguesa.
Mas nem tudo é pessimismo ou tristeza. Como num caleidoscópio, ou nas suas sete faces drummondianas, Clauder nos fala também
de doçura e doces. Com a poetisa dos becos de Goiás, Cora Coralina,
de poesia simples, telúrica, Claude compartilha a lição de humildade,
do menino tímido a quem o mudo assustou; com Cecília, falou de liberdade, de luta, em momento épico. De Adélia, vem o orgulho das raízes
interioranas: “Minhas raízes são (pro)fundas: o
melhor de mim é semente colhida no meu longe,
antes da vida.” (Pág. 95), diz o licaniense: “bendito filho da província”, esta que fez brotar o “mandacaru-poeta”.
Não poderiam faltar os diálogos com o
lírico Quintana, poeta dos pampas, com a leveza
de um menino, e Manoel de Barros, das coisas
miúdas, “poeta percorrido de poessências” do
mítico Pantanal, que desexplica todas as coisas.
Momentos de pureza da infância.
Assim, Clauder Arcanjo tece o seu livro:
momentos dramáticos alternados com momentos líricos; confissões e diálogos com homens
e mulheres ternos ou desesperançados, como
o grande Bandeira, ou cheios de esperança nos
versos de Helena Kolody e de amor em Vinícius
de Moraes. E com muitos outros poetas e poetisas
que o encantaram e com quem dialogou, afinou
sua lira e forjou o seu canto – sem medo de olhar
para trás, correndo todos os riscos, como Orfeu.