Novembro, 2022 - Edição 285
Ao Veiga, com carinho. Memória e sentimento.
“Toda a literatura é fantástica. Até o que se escreve sobre ela” (J.J.Veiga)
A partir dos
anos 1960, ocorreu
um boom dos escritores latino-americanos pelo mundo.
Cortázar e Borges,
Rulfo e Roa Bastos,
Vargas Llosa e Garcia
Márquez, dentre muitos outros, escreviam
um tipo de literatura
a que se chamou “realismo fantástico” ou
“realismo mágico”. E
isso ocorreu, não por
acaso, no momento em que vivíamos
o período tenebroso
das ditaduras militares em quase toda a América Latina.
No Brasil, dois escritores se
destacaram nesse tipo de literatura: o mineiro Murilo Rubião e o goiano José Jacinto
Veiga, imortalizado literariamente por J.J.Veiga. Mesmo os escritores consagrados de
nossa literatura, como Jorge Amado e Érico Veríssimo, fizeram obras nessa modalidade
literária: Incidente em Antares, do escritor gaúcho, e A Morte e a Morte de Quincas Berro
D’Água, do baiano, foram muito lidos, viraram filme ou série televisiva. Vou destacar,
aqui, a obra de José J. Veiga, que conheci nos anos 1970, quando era estudante universitário, e escolhi para tema de minha monografia de conclusão do curso de Letras, em
1976. Nos anos 1980, trabalhei alguns de seus livros com os alunos de graduação na Ufes,
e por causa disso, mantive contato com ele, que morava na rua da Glória, no Rio, e o
convidei a vir conversar com meus alunos. Um pouco dessa conversa está publicado na
Revista Contexto, publicada pelo PPGL-Ufes, em 1992. Ele esteve aqui duas vezes, a meu
convite, hospedou-se no antigo Hotel Hostess da Praia da Costa e, à noite, saímos para
jantar e conversar. Ele era uma figura muito agradável, extremamente afetivo e ficamos
muito próximos: eu, ele e minha esposa. Me lembro que, em nosso último encontro, ao
deixá-lo no hotel, ele me disse: “Sabe aqueles bezerros desmamados que não querem
deixar a mãe de jeito nenhum? Pois eu estou igualzinho. Queria só ficar com vocês.”
Veiga voltou para casa e trocávamos correspondência. Cada carta dele era uma delícia!
Cinco anos depois, ele partiu para a eternidade, mas deixou uma obra imortal, que passo
a comentar com vocês.
Na Wikipédia, o escritor é assim resumido: José Jacinto Veiga, conhecido como
José J. Veiga (Corumbá de Goiás, 2 de fevereiro de 1915 – Rio de Janeiro, 19 de setembro de
1999), foi um escritor brasileiro, considerado um dos maiores autores em língua portuguesa do realismo fantástico. A crítica política e social em seus livros é eivada de lirismo,
mas não por isso menos incisiva. José J. Veiga tem origem rural, pois nasceu em 1915, na
Fazenda Morro Grande, em Corumbá de Goiás. A região natal, o lugar da infância, deixou
marcas indeléveis em sua obra. Estreou na literatura aos 45 anos de idade, com o livro
ganhador do prêmio Fábio Prado em 1959, Os Cavalinhos de Platiplanto, contendo doze
contos. O nome literário, José J. Veiga, foi adotado por sugestão de seu amigo Guimarães
Rosa, após análise numerológica. Suas obras publicadas foram: Os Cavalinhos de
Platiplanto (1959); A Hora dos Ruminantes (1966); A Estranha Máquina Extraviada
(1967); Sombras de Reis Barbudos (1972); Os Pecados da Tribo (1976); O Professor Burrim
e as Quatro Calamidades (1978); De Jogos e Festas (1980); Aquele Mundo de Vasabarros
(1981); Torvelinho Dia e Noite (1985); O Trono no Morro (1988); A Casca da Serpente
(1989); Os Melhores Contos de J. J. Veiga (1989); O Almanach de Piumhy - Restaurado por
José J. Veiga (1989); O Risonho Cavalo do Príncipe (1993); O Relógio Belizário (1995); Tajá
e sua Gente (1997); Objetos Turbulentos (1997);. O Galo Impertinente (1997). Teve seus
livros publicados nos Estados Unidos, Inglaterra, México, Espanha, Dinamarca, Suécia,
Noruega e Portugal. Ganhou, pelo conjunto da obra, o Prêmio Machado de Assis, outorgado pela Academia Brasileira de Letras, em 1997, dois anos antes de sua morte. Hoje,
a rodovia GO-225, que liga Corumbá de Goiás a Pirenópolis, tem seu nome. Faleceu
de câncer no pâncreas, em 31 de janeiro de 1999. Sua obra A Hora dos Ruminantes foi
incluída, por um júri escolhido pelo jornal de Goiás, O Popular, na lista dos 20 livros mais
importantes de Goiás no século XX, tornando-se assim obra canônica.
Para conhecer mais sobre a obra desse importante escritor, vale uma visita à
biblioteca do Sesc Centro, em Goiânia. Ela abriga o Espaço José J. Veiga, inaugurado em
2007. São 1.772 volumes catalogados nesse acervo particular, o que demonstra a importância dada por Veiga à leitura. São títulos em português, inglês e espanhol que identificam uma trajetória de leitura que exerceu uma forte influência em sua obra. Junto aos
livros, há dezenas de documentos que englobam originais de romances, contos, artigos
para jornal, além de cartas recebidas. Entre as prateleiras dispostas no Espaço José J.
Veiga, é possível encontrar cópias de seus textos adaptados para o cinema, o teatro e a
televisão.
Em carta manuscrita do Veiga, enviada do Rio, em 01/11/1991, em três páginas,
ele agradece o texto que lhe enviei (minha monografia de graduação) e disse que ela lhe
seria muito útil todas as vezes que fosse chamado a falar sobre a sua obra, pois “a pessoa
mais indicada para falar sobre uma criação literária não é nunca o autor”. Depois, afirma:
“Você é um leitor muito perigoso. Você lê nas entrelinhas e nas entrepalavras, e esmiúça
tudo! Isso vem me provar que eu estava certo quando comecei a escrever para publicar
já na idade madura, e com um princípio em mente: não brincar em serviço. Porque
tem gente de olho, e você, é um desses. Leem tudo, minuciosamente. Até os nomes de
personagens, ‘pelamor’ de Deus! Eu procurava nomes que não fossem batidos – José e
Maria, Pedro e Ana etc. Me decidi por Doril e Diana. Vem você e me diz que não foram
escolhidos por acaso. E me prova que não. Puxa, Francisco, a gente precisava conversar
mais. Me perdoe, mas vendo você naquele restaurante à beira-mar, comendo nós três
a torta capixaba (grau 10), bebendo cerveja e conversando com a Terezinha assuntos
outros, eu não imaginava que estivesse diante de um leitor perigoso. Vou lhe confessar
honestamente. Eu sabia que estava almoçando com o professor Francisco Aurelio; mas
não sabia que almoçava com o leitor Francisco Aurelio. Me perdoe. Espero podermos
conversar outras vezes, agora sabendo eu com quem estarei falando. Valeu, Francisco, e
muito./ Gostei de saber que você gostou da música do Chico, que eu pensava que fosse
recente até eu chegar aí. (Ele se refere à música Todo Sentimento, que ouvimos juntos no
restaurante e que dizia ser a sua preferida). “Mas a fita que o Jorge tocou lá no restaurante era na voz de Elizete. Então não podia ser nova. Já ouviu Tempo-Rei, do Gil? Se não,
procure ouvir, e aposto que vai gostar./Gostei de Vitória-Vila Velha e dos amigos que fiz
aí, e já marquei: logo que puder, irei aí por conta própria para revê-los e conversar. Um
abração do amigo (espero) e lembranças à Teca e às crianças, cujos nomes lamentavelmente não guardei. Veiga (José J.). P.S.: Claro que você pode publicar aquela palestrinha
na revista da UFES. Veiga.”
A monografia que lhe enviei, cujo título é “Proposição de leitura do elemento
fantástico em A Máquina Extraviada, de José J. Veiga, como questionamento da realidade”, defendida em 1976 para obter o título de Licenciado em Letras, Português/
Inglês, tem a seguinte estrutura, palavra-chave daqueles tempos, pois estavam em voga
o Estruturalismo e a Análise Estrutural da Narrativa: Introdução. Desenvolvimento.
Conceituação de Realismo Fantástico. Realismo Fantástico – Realismo Mágico. O
Realismo Fantástico em José J. Veiga-Evolução: “O Diálogo da Relativa Grandeza.” A
estrutura da narrativa. As personagens infantis: função. Idade. Linguagem. Oposições;
Ambiguidade. “A Máquina Extraviada.” A estrutura da narrativa. A função do elemento
fantástico; o absurdo na construção da narrativa. Povo do sertão x personagem-narrador: onisciência x ingenuidade. O deslocamento do objeto no foco-narrativo: HomemMundo. Comparação entre os dois contos: Semelhanças e Diferenças. Conclusão.
Meu propósito com aquele trabalho era fazer uma leitura comparativa de dois
contos do Veiga do livro A Máquina Extraviada, procurando ler a narrativa fantástica como questionamento da sociedade tecnológica contemporânea e do absurdo da
própria vida. Fiz uma revisão dos conceitos de fantástico então em voga e concluí ser
a narrativa fantástica uma revelação reprimida do real.
“O fantástico, mais que o real,
é uma denúncia do real porque expressa a realidade através do absurdo.” Não sei se
ainda chegaria a essa conclusão, pois 45 anos se passaram e continuo sendo o “rapaz
latino-americano sem dinheiro no bolso, sem amigos importantes e vindo do interior”,
trocando-se “rapaz” por “idoso” (Rs), muito mais experiente e menos sonhador. Talvez
o que não tenha mudado também seja tão somente o desalento diante de um mundo
em ruínas, a descrença na humanidade e a certeza de que “o homem é o lobo do próprio
homem”, na citação clássica de Plauto feita por Freud no ensaio O Mal-estar da Cultura,
de 1930. Como, em minha análise, usei conceitos da psicanálise para definir fantástico,
“uma maneira de contar o real que se estrutura como o fantasma” (Noël) e fantasma
como “encenação imaginária em que se encontra o sujeito e que representa a realidade
inconsciente de um desejo” (Laplanche), talvez, hoje, continuasse a recorrer à psicanálise para tentar explicar a literatura fantástica como manifestação do inconsciente
reprimido ou até mesmo a Jung para buscar ali os arquétipos do inconsciente coletivo
de uma humanização perdida ou sonhada. Isso não importa. A obra do Veiga fala por
si e não precisa de intérpretes. O tempo é rei. Talvez, para ler a obra de Veiga, nos baste
todo o sentimento, “Onde não diremos nada/ Nada aconteceu/ Apenas seguirei, como
encantado/Ao lado teu”, como versejou lindamente Chico Buarque.
Veiga começou a publicar em 1959, mas, seu primeiro livro, Os Cavalinhos de
Platiplanto, só passou a ser realmente conhecido a partir da segunda edição, em 1970,
dois anos após o lançamento de A Máquina Extraviada, seu segundo livro de contos.
Observe-se que as datas, 1968 e 1970, coincidem com o recrudescimento da repressão
política no Brasil, o AI-5 e o fim da liberdade, a censura e a repressão aos opositores do
regime militar. Analisando o foco-narrativo dos contos dos livros supracitados, constatei
que o narrador, “tendo perdido as certezas absolutas, recusa a onisciência e se limita à
visão parcial de um personagem”, característica predominante na narrativa fantástica do
século XX, pós-Kafka, gerando ao relato uma atmosfera de ambiguidades e de incertezas,
exatamente o que faz José J. Veiga. Carlos Rangel, em entrevista a José J. Veiga, à Revista
Escrita, em 1975, destaca o caráter político de sua obra, em que “realidade e fantasia se
mesclam num clima sufocante”. E ainda: “O Brasil atravessava um momento bem difícil
e não faltou quem interpretasse de uma maneira bem particular a invasão dos ruminantes (em A Hora dos Ruminantes, 1966). “Os cães e os bois não seriam apenas a fórmula
possível para denunciar a violência dos homens contra os homens, dos regimes contra
os homens?”. Creio que é tempo de reler J.J.Veiga. Talvez, em sua obra, a gente consiga
entender um pouco o absurdo da vida.