Novembro, 2022 - Edição 285
Aniversário do Gonzaguinha
Eu sei que ele morreu e morreu jovem. Sou um homem que sabe das
coisas, só não sei como as coisas chegaram onde chegaram.
Gonzaguinha, que nasceu no dia em que nasce a primavera, escreveu o
amor e a liberdade como convicção de vencer as ditaduras e de resistir: “Nunca
se entregue, nasça sempre com as manhãs.”
A primavera desmente as mortes dos invernos. A da estação e a da alma.
“Toda pessoa é sempre as marcas de outras tantas pessoas.”
Pessoas do meu tempo andam marcando com dor outras pessoas. Eu,
que sou vendedor de pastel em uma das tantas feiras da grande cidade, vi uma
mulher, candidata a um cargo importante, gravando um vídeo com um falso
sorriso de alegria e jogando no lixo o pastel que não comeu. E vi uma outra
mulher, remexendo o lixo para espantar a fome.
Ouvi no rádio, da minha barraca, a história de um presidente que, mais
uma vez, desrespeitou uma mulher. Eu não tive estudo, mas estudo os comportamentos dos outros. E não acho certo o machismo, nem a covardia, nem
o desrespeito.
Vi no celular a cena triste da imagem de um homem, se autoproclamando distribuidor de bondades, humilhando uma mulher ao entregar para ela
uma marmita. Não acho certo. A bondade é livre, é pura, é bonita. “Eu fico com
a pureza da resposta das crianças, é a vida, é bonita e é bonita.”
Não gosto de armas. Armas ferem e matam. Gosto de escolas. Escolas
cultivam bonitezas. Ainda sonho em estudar. Parei nos inícios, vida dura que
tive. Onde moro, muitos jovens morrem sem deixar de ser jovens. Basta andar
pelo cemitério. Gosto de ver as placas com as despedidas. É triste quando a data
de falecimento é tão próxima à data de nascimento. Vidas desperdiçadas. Não,
não gosto de armas, nem de brigas, nem de ódios.
Desperto o dia, na minha casa de um único cômodo, e renovo a decisão
que aprendi de minha avó, analfabeta, que me ensinou que ninguém deve
causar mal em ninguém.
Fazer pastel é uma inspiração. Sorrio cada sorriso de quem come e sente
a gostosura do que preparei. É bom alimentar. Quando vejo quem não tem,
tento ajudar. Se tivesse mais, ajudaria mais. A vida passa tão rapidamente que
fazer alguém feliz é colocar dentro da gente uma boa porção de felicidade. “E o
brilho das pessoas é bem maior, irá iluminar nossas manhãs.”
No aniversário do Gonzaguinha, quero aniversariar a decisão inegociável
de não jogar fora a esperança, de não cultivar nenhum preconceito, de desalojar a mentira e as arrogâncias, de celebrar um tempo de bondade que está
sempre pronto para nascer.
Semana que vem, é dia de eleição. Quando perguntam na feira, enquanto
saboreiam o pastel, sobre em quem votar, eu faço como a minha avó, falo de
mansinho para nunca machucar. Mas votar em quem machuca, jamais. Votar
em quem tripudia sobre a dor do outro, jamais. Votar em quem não demonstra
sentimentos de compaixão, isso não.
Sei que há os que acreditam que a mentira tem poder de convencimento.
Pode ter. Não em mim. Eu desacredito do que não me provam. Eu provo o amor
como a luz que me explica onde devo ir e como devo me portar.
Ainda vou estudar para saber mais coisas. O que sei, da escola da vida, é
que a vida é o que tenho, é o que defendo. Se um dia eu conseguir, serei professor, acho que, de todas, é a profissão mais bonita. Ensinar. Ajudar os medos a
irem embora, um a um. Ajudar a tirar dos ombros os pesos que não são nossos.
Gosto dos livros. Leio devagar, mas leio. Gosto de anotar as palavras que
não conheço e de ficar repetindo. E, vez em quando, canto também. Enquanto
frito os pastéis. Enquanto sonho com um mundo sem as hipocrisias nem as
injustiças.
Sobre a mulher que estava no lixo buscando o que comer, eu preparei um
pastel bem gostoso. E, sobre a outra, a candidata, deixa pra lá, porque eu sei
“que a vida podia ser bem melhor”, e “se depender de mim, “será”.
Feliz aniversário, Gonzaguinha.