Verde: a cor favorita de Lygia Fagundes Telles
Mergulhei nos estudos da vida e obra da grande dama da Literatura Brasileira,
Lygia Fagundes Telles (1918-2022). Conheci-a há muito tempo, desde a década de 1980,
em minhas viagens a São Paulo. O primeiro encontro foi no Museu de Arte de São Paulo,
numa Bienal. Quando ela entrou no salão, causou impacto. Seu brilho pareceu-me
tão forte quanto o de uma estrela cintilante. Sua voz era clara, as frases desfiadas com
inteligência e sensibilidade. Passamos a nos corresponder. Generosa, enviou-me livros
autografados. Que emoção reler as dedicatórias: neste Seminário dos Ratos, “Para Raquel
Naveira, agradecendo seu livro, este ‘seminário’ com o meu abraço de carinho e admiração, Lygia Fagundes Telles. Primavera de 92”. Sua assinatura é tão distendida, marcante.
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Num Ciranda de Pedra, ela revela que este é o romance de sua juventude. No Mistérios,
ela afirma: “E este Mistérios está de roupa nova, pretexto para um afetuoso abraço.” No
Horas Nuas, edição portuguesa, ela me envolve com o “melhor abraço de amiga”. E, para
encerrar, em Antes do Baile Verde, crava um “Raquel Naveira, minha bela camarada de
ofício”. E há também xerox de páginas de revistas, que ela ia me mandando com sede de
diálogo e partilha.>
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Folheio agora um dos Cadernos de Literatura Brasileira, do Instituto Moreira
Salles, dedicado à Lygia. A organização foi de Antônio Fernando De Franceschi e Rinaldo
Gama. Lygia exuberante, aos setenta e quatro anos, fotografada com um dos seus gatos,
falando em longa entrevista sobre sua paixão pelo ato de escrever. É nessa entrevista que
encontro um recorte interessante: a cor favorita de Lygia era o verde, presente em muitas
sinestesias de seus textos. De onde viera o fascínio por essa cor entre o azul e o amarelo,
resultante de confluências cromáticas, explodindo em raios, espalhada pelos ramos?
Lygia nos explica que, quando criança, o pai, um delegado, que trabalhou em várias
cidadezinhas do interior paulista, era jogador. Levava-a aos cassinos para jogar baralho
e roleta. Sobre o feltro verde da mesa, tilintavam as fichas, recolhidas depois com uma pá
gelada. Confessa Lygia: “Sempre que meu pai perdia, virava-se para mim, apalpando os
bolsos vazios e dizia, esperançoso: ‘Amanhã a gente ganha’. Na roleta apostava no verde.
Eu, que jogo na palavra, sempre preferi o verde, ele está em toda a minha ficção. É a cor
da esperança que aprendi com meu pai.”
Desde sempre o verde foi a cor da
esperança. Depois do inverno, da neve e
do frio, mostrando ao homem sua solidão
e precariedade, a terra se revestia de um
manto verde esmeralda, novo ciclo de
fecundidade e esperança.>
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Verde, a cor do reino vegetal. Lygia
que era tão urbana, paulistana, nascida
no bairro de Santa Cecília, transitando
pelas ruas cinzentas, habitando apartamentos simples, em prédios centrais,
declara sobre a prioridade política para a
metrópole do seu coração: “O restabelecimento do verde.
Essa cidade não tem mar,
o que é grave. Se perdermos então todo o
verde... Veja bem: eu não tenho casa de campo, não tenho chácara, acho que a maioria
dos habitantes de São Paulo está na mesma situação – pois vamos nos encontrar com a
natureza de que modo? Onde? Estou aqui, no meu apartamento, cercada de apartamentos por todos os lados, concreto, ferro, cimento, pois então eu quero a praça, eu quero o
verde.” Ah! O verde dos jardins selvagens de Lygia.>
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O verde, além de ser a cor dos movimentos ecologistas e da nostalgia de ver a terra
desaparecer sob uma paisagem de cimento e aço, era também para Lygia uma cor filosofal, de criação: “Tenho mesmo um purgatório de temas. Ficam lá os temas que ainda
não amadureceram. Mas eu convivo bem com estes temas verdes. Eu gosto da cor verde,
é a única que amadurece.”
Como esquecer da cor verde nos contos fantásticos de Lygia? No conto Antes do
Baile Verde, duas jovens discutem diante de um homem moribundo, pai de uma delas.
Ambas querem ir ao baile de Carnaval, cuja fantasia seria verde. A filha, diante daquela
situação dramática, terminal, toma a decisão de ir ao baile: “Quando bateu a porta atrás
de si, rodaram pela escada algumas lantejoulas verdes na mesma direção, como se quisessem alcançá-la.”
Que beleza! A ânsia de viver, a nuvem de lantejoulas verdes no ar.
O conto Natal na Barca é sobre os laços de afeto entre os seres humanos. Mãe e
filho numa barca ancestral, nas trevas, observados por uma passageira que é a narradora, talvez a própria Lygia. Por um momento, aterrorizada, vê o filho morto nos braços da
sofrida mãe. Milagre: ao final da travessia, ele revive. A narradora assim termina o texto:
“Saí por último da barca. Duas vezes voltei-me ainda para ver o rio. E pude imaginá-lo
como seria de manhã cedo. Verde e quente. Verde e quente.” O despertar das águas primordiais, os cabelos verdes da sereia se desmanchando em algas. Esse rio me lembrou o
da minha infância, o rio Apa, na fronteira entre o Brasil e o Paraguai. Era verde e quente.
Guardo com cuidado os livros de Lygia na estante. Tenho a estranha sensação de
que uma luz verde banha as minhas mãos.