Polemistas e liberdade de expressão

Hoje em dia parece que quem não se manifesta nas redes sociais está condenado a não existir; é quase como se a essência do ser tivesse passado a residir na opinião. Só que, opinando sem refletir, bom senso e polidez acabam esquecidos e fazendo falta. Se nas relações pessoais a consequência pode ser o estremecimento, ou até o rompimento, no âmbito corporativo, a conduta pode gerar sanções. Entre as carreiras públicas não é diferente, muito pelo contrário.

Existem restrições que são óbvias a manifestações pessoais: não fica bem, por exemplo, falar mal do chefe. Sinceridade, assertividade, tudo isso vai ser pesado pelo destinatário de possível juízo depreciativo, e uma reação à altura é o mínimo que se pode esperar. Em outros tempos, assim se notabilizavam os polemistas, enfrentando-se nas páginas dos jornais e desenvolvendo argumentação nem sempre baseada na lógica, já que importava o calor do momento. De muitos desses embates, dessas polêmicas pelos jornais, ficaram lembranças, envolvendo personagens famosos nos meios culturais.

Uma das carreiras mais restritivas nisso de manifestações públicas sempre foi a da magistratura. A Lei Orgânica da Magistratura Nacional estabelece vedações, o órgão de fiscalização e controle da atividade judicial impõe diretrizes e regras a respeito, e de vez em quando aparece notícia de magistrado investigado por possíveis excessos verbais.

Mas esse rigor não existiu sempre nos mesmos moldes de hoje; houve tempo em que magistrados podiam, por exemplo, se envolver mais de perto com a educação nas suas comarcas e colaboravam regularmente nas páginas de jornais.

Exemplo de magistrado capaz (ministro do Supremo Tribunal Federal), de temperamento forte, jornalista-polemista, foi Lúcio de Mendonça, o idealizador da Academia Brasileira de Letras. Anticlerical, adepto do realismo literário, nem por isso deixava de ser polido com quem pensava diferente. Como demonstra um caso contado por Josué Montello no seu Anedotário Geral da Academia Brasileira: certa ocasião, retirou-se Mendonça da sala para ler em companhia de um amigo livro filiado àquela estética literária, alegadamente para não perturbar as orações de um sacerdote com quem dividia a casa.

Montello narra também casos sobre a pena ferina de Mendonça, que chegou a ripostar a Rui Barbosa censura que lhe fora dirigida pelo fato de integrar comitiva presidencial à Argentina. Rebatendo ponto por ponto as acusações, Mendonça encerrou o texto respondendo à afirmação de Rui quanto a sua conduta configurar uma “inclinação da toga à favorança”, observando que a expressão “favorança” só denunciava a inclinação de seu acusador ao português antiquado... Polêmicas à parte, foram contemporâneos na Academia Brasileira. Mas imaginemos, nos dias de hoje, um magistrado e um advogado, atuante na Corte onde funciona o primeiro, acusando-se e ironizando-se pelas páginas dos jornais.

Tempos outros, as polêmicas atuais, mais comezinhas e menos surpreendentes, por isso mesmo já não atraem tanta atenção. O exacerbamento no trato deixou de ser exceção e, se não constitui a regra, a isso chegaremos brevemente – mesmo entre os que, tirando o bom senso, têm obrigação de se portar com urbanidade. E assim, estremecimentos, rompimentos e investigações vão se sucedendo.

Por Getúlio Marcos Pereira Neves - Membro do PEN Clube do Brasil