O amor que não tive

Hoje acordei emaranhando palavras carregadoras de sentimentos que o tempo teima em não dispensar. Já faz tempo que ela morreu, minha mãe, dona Sílvia de Albuquerque Quental Cavalcante. Gostava ela de exibir nome e sobrenome. Albuquerque era do pai. Quental Cavalcante, acréscimo do marido, meu avô.

Pois bem, meu avô, Antonio de Quental Cavalcante Neto, era a terceira geração de uma importante família em que o filho mais velho recebia o nome do pai. Nenhuma das mulheres, antecessoras de minha mãe, falhou em oferecer um filho homem a uma família tão tradicional.

Meu pai tinha um irmão mais novo. Os dois se casaram em anos próximos. Minha mãe e minha tia ficaram grávidas no mesmo período. A expectativa de um filho homem fez com que minha mãe fizesse promessa aos santos de sua devoção. Meu avô ostentava a emoção do primeiro neto, homem. Nasceu minha irmã, mulher. Minha mãe, aborrecida, deu o nome de Ana, esposa do meu avô, para amenizar a decepção. Minha tia, Elvira, teve homem. Resolveu a família, entretanto, escolher um outro nome que não o de Antonio para o filho.

Dois anos depois, as duas cunhadas grávidas, novamente. Minha mãe temia uma outra filha mulher. E veio. Enquanto tia Elvira teve um outro homem. Minha irmã, Dulce, veio pequena demais para prosseguir vivendo. O choro durou o tempo certo e novamente a gravidez de minha mãe trouxe esperança àquela família cheia de necessidades de tradições. Disse a mim um dia, minha mãe, que tia Elvira falou que era a sua última chance de ter um filho homem. Que, se nascesse mulher e tivesse ela um menino, colocaria o nome de Antonio de Quental Cavalcante Bisneto. Minha mãe chorou para dentro a ameaça. Minha avó chegou a dizer contrariedades quando da gravidez. E foi assim assim que eu nasci. E foi assim que um outro homem nasceu do ventre da minha tia.

Minha mãe me disse que sofreu tanto que não me olhou por anos. Que me viu como uma praga por algum pecado que ela havia cometido. Depois de mim, minha mãe teve três filhos homens. E foi assim que ela disse que voltou a amar. Mimou cada um deles. Mimou os mimos que eu nunca tive. Os tempos são outros. Dona Silvia, fez comigo o que fizeram com ela. Era o repertório humano que ela tinha. Ou era a ausência de humanidade plantada nela por exigências que ultrapassam decisões nossas. Quando me casei, ela contou a história ao meu marido, só que entre risos, com leveza. O tempo foi esvaziando sua decepção e ela me amou como pôde.

Meu marido foi o primeiro filho, o primeiro neto, o premiado de amor de todos os cantos da família. Fomos felizes. Mas, em mim, sempre moraram buracos dos inícios dos meus alicerces. Ouvi mais de uma vez de Josué, meu bom marido, que eu tinha imensa dificuldade em demonstrar amor. Ouvi isso dos nossos filhos. Ouvi isso das nossas netas. Em dias de aniversário, quando celebravam a minha vida, eu sorria disfarçando lembranças. Em ocasiões de elogios, eu desajeitava os agradecimentos.

Estou próxima de completar 80 anos. E ainda me reviro na fala dura da minha mãe. “Fiquei anos sem olhar para você, anos lamentando o seu nascimento, mas agora passou.” Passou para quem? – perguntava a mim mesma. Por que essa sinceridade tão desnecessária?

Meu tio, que herdou o nome empolado, deu tristezas para a família. Matou por ciúmes a mulher e morreu em uma fuga desesperada do presídio. Eram vivos ainda os meus avós. Eles viram minhas vitórias. Juíza de Direito. A primeira da cidade. Respeitada. Ciosa do dever de fazer o bem.

Quando virei desembargadora, eram vivas apenas minha avó e minha mãe. Choraram na minha posse. Foi uma mulher, rejeitada por eles, que perfumou de felicidades aquela família. A realização profissional e a consciência do bem-viver amenizam lembranças dolorosas, mas não apagam. Há cicatrizes em mim do amor que não tive. Foi uma empregada que cuidou de cuidar de mim. Que brincou histórias em minha mente em formação. Que jardinou de sentimentos corretos minha alma de mulher. Vitória era o seu nome. Chorei a sua partida com o choro da gratidão por não ter me perdido.

As filhas e filhos que vieram de mim conheceram outros tempos de humanidade. Se alguma demonstração de afeto ficou faltando, não faltaram palavras de devida construção de um mundo sem preconceitos. Falhei sim, muitas vezes. Mas foi o que consegui. Foi o que dei do que recebi. Tenho saudade das duas, de Sílvia e de Vitória, nome que dei à minha primeira filha. Mães que permanecerão até eu partir. Em meus julgamentos, não há espaços para mágoas. Apenas para lembranças, aprendizados, poesia. Na poesia do entardecer da minha vida, ainda quero quebrar algumas pedras que duramente impedem que me vejam como uma mulher disposta a amar. A amar até o fim.

Ainda tenho tempo. Ainda tenho tempo de ensinar ao tempo em que vivo que negar amor é a maior das injustiças que um humano pode provocar em outro humano.

Por Gabriel Chalita - Membro da Academia Paulista de Letras