Julho, 2022 - Edição 281
Entrevista com Rosiska Darcy de Oliveira
Entrevista transmitida em nível nacional, no Programa Identidade Brasil, apresentado por Arnaldo Niskier no canal Futura
Paulo Freire e Santa Terezinha
Arnaldo Niskier: Hoje, com muita alegria, recebemos a visita da professora, escritora e imortal Rosiska
Darcy de Oliveira, membro da Academia Brasileira de
Letras. Ela tem uma responsabilidade muito grande de
editar nossa Revista Brasileira de grande tradição na
cultura brasileira e que agora volta a ser editada pela
diretoria atual da Academia Brasileira de Letras, presidida pelo jornalista Merval Pereira. Como vai ser esse
lançamento da Revista Brasileira?
Rosiska Darcy de Oliveira: Realmente, no momento, estou celebrando o lançamento da Revista Brasileira,
que, por incrível que pareça, é talvez a mais antiga do
Brasil. É uma revista tão antiga, tão mais que centenária
que a Academia Brasileira de Letras, que está fazendo agora 125 anos, foi fundada na redação da Revista
Brasileira. Essa revista de longa vida está saindo agora
de roupa nova. Mudei bastante, não só a forma, como os
conteúdos dela, porque achamos que devia corresponder
melhor ao que é a Academia hoje. A Academia hoje, sendo
também uma instituição mais que centenária, é uma instituição muito contemporânea...
Arnaldo Niskier: Haja vista a entrada dos novos
acadêmicos, muita gente questionou isso. Gilberto Gil,
Paulo Niemayer, enfim, todos que vieram... Houve questões assim: “Mas são escritores de ofício?”
Rosiska Darcy de Oliveira: Esse é um debate
muito antigo, que se arrasta desde a própria fundação...
Arnaldo Niskier: Com repercussão na Academia
Francesa da qual copiamos muita coisa.
Rosiska Darcy de Oliveira: Mas nós, por exemplo,
elegemos mulheres antes da Academia Francesa. Rachel
de Queiroz foi eleita muito tardiamente, mas foi antes
de Marguerite Yourcenar, primeira mulher da Academia
Francesa. A Revista Brasileira quer justamente ser contemporânea, com páginas de debate sobre questões
que são difíceis, que são muitas vezes polêmicas. Por
exemplo, Amazônia, são várias Amazônias. Estamos
apresentando um dossier sobre a Amazônia, porque,
em cada número doravante, haverá uma questão central do Brasil. A revista é brasileira, foi lançada no dia
1º de junho, na Livraria Travessa do Leblon. Essa revista
traz um dossier importante sobre a Amazônia que está
apresentada no plural, porque a Amazônia é infinita,
tem uma quantidade de ângulos pelos quais pode ser
abordada. Procuramos dar uma diversidade grande aos
temas que foram tratados, mas tem uma coisa que me
deixou particularmente feliz. Fiz uma entrevista que
achei muito interessante com o Sebastião Salgado, que
teve a generosidade de nos ceder quatro fotos dele (fotografia dos indígenas) que são muito bonitas e enfeitam
muito a revista, dão uma riqueza muito grande à revista,
e as palavras dele também. Então, temos esse dossier e
temos também uma sessão chamada “ABL portas abertas”, que é uma maneira de convidar o público (para
quem estamos falando agora) a frequentar a ABL, que
oferece muitos produtos culturais interessantes.
Arnaldo Niskier: Durante muito tempo, se pensou que a Academia era uma entidade fechadíssima
(não era nem fechada). Agora se vê, com essa Academia
de portas abertas que você liderou ao lado do Merval
Pereira, o novo presidente da Academia, esse processo de abertura. Qual é a finalidade? Você acha que a
Academia precisa dessa popularidade?
Rosiska Darcy de Oliveira: Não da popularidade.
Ela precisa estar no seu tempo, colaborar com seu tempo,
pensar o seu tempo e oferecer cultura, que é o que mais
temos aqui. A Academia reúne grandes talentos que têm
muito a dizer. Dispomos de uma sessão de seminários
que acontece uma vez por semana, às quintas-feiras,
em que desfilam as ideias mais ricas do pensamento
brasileiro, os conferencistas mais preciosos que se possa
imaginar falam aqui.
Arnaldo Niskier: Assisti, na semana passada, à
palestra do Wisnick sobre a Semana de Arte Moderna de
improviso. Que beleza!
Rosiska Darcy de Oliveira: Foi lindíssimo. E justamente Wisnick escreve nesse número que vai ser lançado
sobre a Semana de 22, e a palestra que você ouviu aqui é
muito do texto que ele escreveu para nós no relançamento da Revista Brasileira. Outros escrevem sobre outros
temas. Há algum tempo, tivemos aqui o Dr. Drauzio
Varella, que fez uma belíssima palestra sobre o fim da
vida, que será publicada no próximo número 2, enfim
esses são os nossos seminários. Temos um palco, um teatro, Teatro Raimundo Magalhães Jr., que é dos bons do Rio
de Janeiro (onde estamos gravando aqui).
Arnaldo Niskier: Um parêntese. Fui eu que batizei
esse teatro.
Rosiska Darcy de Oliveira: Meus parabéns, foi a
sorte de ter tido um bom presidente.
Arnaldo Niskier: Na época, o Raimundo tinha
falecido há pouco, resolvi homenageá-lo, dando o
nome deste teatro, que não tinha nome, era Teatro
da Academia, do nosso querido e saudoso acadêmico
Raimundo Magalhães Júnior. O Raimundo, até onde
me lembro do convívio na Manchete, era grande amigo
da Fernanda Montenegro e do marido dela, Fernando
Torres. Você se lembra disso?
Rosiska Darcy de Oliveira: Não, não me lembrava disso, mas então é uma feliz coincidência, porque Fernanda, que agora é um membro da Academia
Brasileira de Letras, para nossa honra e orgulho, é a maior
atriz brasileira e vai ocupar o nosso palco nas comemorações dos 125 anos da Academia. Ela vai fazer uma peça,
uma leitura dramática aqui no nosso palco, o que é um
privilégio. Então, é preciso saber que temos também um
palco, um teatro, e isso tem que ser de portas abertas, porque isso é uma tamanha riqueza. A possibilidade de ouvir
Fernanda fazendo uma leitura dramática aqui, nessa
casa, é outro exemplo.
Arnaldo Niskier: Você já imaginou Fernanda
Montenegro falando sobre Machado de Assis?
Rosiska Darcy de Oliveira: Em algum momento
isso deve acontecer. Além de palco, temos uma cinemateca, que é levada a frente pelo Cacá Diegues, temos
arquivos, temos biblioteca, temos o Volp, temos todo um
trabalho importante de lexicografia, tudo isso é cultura e
essa cultura é o que a Academia oferece ao público que
a frequenta. Tudo isso está na Revista Brasileira, que é
um outro produto da Academia. A revista é da Academia
Brasileira de Letras e trata de todos os assuntos: ficções,
com escritores muito importantes que estão aqui e os que
não estão aqui também; poesia, temos grandes poetas
dentro e fora da Academia que escrevem na nossa revista;
ciências, em que acontecem coisas tão fascinantes. Nesse
primeiro número, por exemplo, temos uma contribuição
belíssima do Dr. J.J. Camargo, que é grande cirurgião, foi
responsável pela primeira cirurgia de transplante de pulmão no Brasil e que escreveu um texto belíssimo sobre
a esperança na medicina, chamado “Um transplante de
esperança”. Dr. Paulo Niemayer, que tomará posse em
breve aqui na Academia, escreveu sobre essa coisa misteriosíssima que é o cérebro, os mistérios do cérebro, enfim
estou citando vários. José Luiz Alquéres, que fez um texto
sobre a história da ciência, Luiz Alberto Oliveira, que é
um cosmólogo, apresenta também sua visão cósmica das
coisas. Assunto é o que não falta. Temos a poesia cantada e uma participação importante do Gilberto Gil nessa
revista...
Arnaldo Niskier: E temos outros letristas, que
foram citados pelo Secchin na posse do Gilberto Gil,
como Antonio Cicero, Geraldinho Carneiro e um que
precisa ser citado (Ana Maria Machado outro dia falou
sobre ele) que é Paulo Coelho.
Rosiska Darcy de Oliveira: Paulo Coelho escreveu
na nossa revista, no primeiro número, um artigo muito
bonito sobre como é que ele escreve, como nasce a escrita
nele e esse artigo vai ser publicado agora. Ele está entre os
autores ficcionistas que estão escrevendo.
Arnaldo Niskier: Ele participa ativamente da vida
da Academia, porque telefona sempre para saber como
vão as coisas, para dizer a opinião dele sobre certas candidaturas.
Rosiska Darcy de Oliveira: Fiquei muito comovida, porque fui visitar com ele, antes que fosse inaugurada,
a Fundação que ele criou, em Genebra, que abriga toda a
obra dele, uma beleza de fundação. Logo na entrada, há
uma grande caixa de vidro onde está o fardão dele, fardão
da Academia. Achei bem comovente isso. Enfim, a revista
traz todos aqueles que puderam colaborar, que gostaram
de colaborar e acho que é uma revista que deve ser lida.
A revista sairá quatro vezes ao ano. O número 2 vai sair
nos 125 anos da Academia, ou seja, vai sair em julho.
Esse número atrasou por conta de ser o primeiro, estava
exigindo muita reforma gráfica, teve uma série de exigências. Mas, no próximo número, já vamos ter um dossier
importante sobre cultura brasileira com todos aqueles
que colaboraram para a formação do que é o Brasil, para
a cultura brasileira. Inclusive, vamos ter o prazer de ter
você escrevendo.
Arnaldo Niskier: Passei o fim de semana trabalhando sobre um tema muito interessante, que é a
presença dos judeus na cultura brasileira, uma presença muito rica dos cristãos novos. Acho que vai valer a
pena ler esse artigo, além dos outros que comporão o
número 2 da Revista Brasileira. Você passou 15 anos fora
do Brasil obrigada por aqueles tempos obscuros que
vivemos, 21 anos de ditadura que não deixou saudade.
Como foi seu convívio na Suíça ou na Europa com Paulo
Freire? Convém recordar isso, porque é um aspecto
importante da cultura brasileira, da educação brasileira, sobretudo. Como foi esse convívio?
Rosiska Darcy de Oliveira: Um presente para
mim. Uma parte muito importante da minha própria formação. Era muito jovem e, assim que comecei meu exílio,
que durou esses 15 anos, recebi em casa um telefonema e,
quando atendi, era uma voz de homem do outro lado que
disse: “Meu nome é Paulo Freire, gostaria de lhe conhecer,
sei quem você é. Estou aqui na Suíça também, gostaria
que soubesse que você conta comigo como amigo aqui na
Suíça.” Foi a primeira pessoa que me procurou para oferecer ajuda e me convidou imediatamente para almoçar
na casa dele. Ele tinha uma família com Elza e mais cinco
filhos. Foi uma imensa alegria e, desde então, se tornou
um pouco minha família lá. Depois disso, eu e Paulo
ficamos amicíssimos, trabalhamos muitos anos juntos,
trabalhei 15 anos com ele. Fundamos juntos o Instituto
de Ação Cultural que, como diz o nome, vem do trabalho
dele no Brasil que se chamava Ação Cultural e fundamos o
IDAC – Instituto de Ação Cultural. Ele foi presidente desse
instituto todo o tempo na Suíça e depois aqui no Brasil
também. Quando voltamos para o Brasil, continuamos
a manter o trabalho e depois, quando ele saiu, foi ser o
Secretário de Educação de São Paulo. Nós assumimos a
presidência. Tive com ele essa experiência de um trabalho em toda a Europa. Nessa época, Paulo foi uma
celebridade no mundo todo.
Arnaldo Niskier: Ele era adotado em vários
países, método Paulo Freire de alfabetização.
Rosiska Darcy de Oliveira: Ele foi um homem
que influenciou o pensamento sobre educação de
quatro continentes, com certeza. Fomos juntos para
a Guiné, fizemos um grande programa no momento
da Independência da Guiné, depois da Guerra da
Libertação. Fizemos um grande programa educacional
na Guiné. Depois começamos a dar aula juntos, na
Universidade de Genebra.
Arnaldo Niskier: Sobre educação de adultos?
Rosiska Darcy de Oliveira: Sobre educação de
adultos. Educação de adultos, na Suíça, não queria
dizer alfabetização, queria dizer muito mais uma
reflexão sobre educação permanente e ele tornou-se
um mestre desse debate. Escrevi, na época, sobre
ele, um pequeno livro chamado Illitch e Freire, referindo-se ao Ivan Illitch, que era outro pensador de
educação e era muito amigo de Paulo. Eles faziam
uma revolução no pensamento sobre educação. Paulo
escreveu vários livros comigo, escrevemos Cuidado,
Escola!...
Arnaldo Niskier: Você participou do livro
Pedagogia do oprimido?
Rosiska Darcy de Oliveira: Não. O Pedagogia
do oprimido já existia na época. Esses foram livros
que foram feitos no IDAC, ainda no Instituto Ação
Cultural. Foi o Cuidado, Escola!, que foi depois grande sucesso aqui no Brasil e é até hoje é um livro que
vende muitíssimo, A Vida na Escola e a Escola da Vida
foi outro...
Arnaldo Niskier: Essa obra do Paulo Freire
tinha uma preocupação com o comunismo ou isso é
exploração dos seus adversários?
Rosiska Darcy de Oliveira: Isso é uma das coisas mais ridículas que se possa imaginar. Paulo era um
católico fervoroso, grande devoto de Santa Terezinha,
usava várias medalhas de Santa Terezinha no peito,
sempre foi grande católico. Isso foi jogado sobre ele
simplesmente para destruí-lo. Basta ler os livros dele,
não há nada sobre isso.
Arnaldo Niskier: Não tem nada de proselitismo?
Rosiska Darcy de Oliveira: Nada. O que existe
é um pensamento cristão e, como todo bom pensamento cristão, preocupa-se com desigualdade
social, com trazer para uma vida melhor as pessoas
que estão desassistidas, que era o caso dos camponeses no Nordeste, que eram todos analfabetos, e
fazer da educação uma prática da liberdade. Essa é
a contribuição do humanista Paulo Freire. O grande humanista Paulo Freire que escreveu esse livro
brilhante, Educação como Prática da Liberdade, e
depois o segundo, Pedagogia do oprimido. Paulo
tem uma obra ampla. Os livros que citei foram livros
coletivos que fizemos no IDAC, mas ele tem uma
obra só dele, que é uma obra esplêndida, enorme,
respeitadíssima. Nunca, em nenhum desses lugares
fora do Brasil, Paulo foi visto como uma pessoa que
tivesse alguma coisa a ver com comunismo. Isso é
ridículo, isso é uma fake news, uma notícia falsa.
É uma coisa que foi jogada sobre ele para justificar
uma das injustiças mais monstruosas da história do
Brasil contemporâneo, que foi exilar, deixar tantos
anos fora do país uma pessoa que era uma das maiores riquezas desse país.
Arnaldo Niskier: Mas não foi só ele. Outros
mais, inclusive você, tiveram que sofrer com isso e
evidentemente perde o país, perdeu o país.
Rosiska Darcy de Oliveira: Mas poucas perdas
foram tão graves quanto a do Paulo. O Paulo era um
trunfo do Brasil, até hoje a memória dele é um trunfo
do Brasil.