A história, o avião, o rei

Realidade e ficção

A editora Harper Collins, do Rio de Janeiro, publicou, em 2019, em tradução de Milena Vargas, o magnífico livro do escritor italiano Alberto Angela, Cleópatra – a rainha que desafiou Roma e conquistou a eternidade. À pág. 183 o grande historiador e talentoso escritor declara que “a História muitas vezes supera a fantasia, até a dos mais bem pagos cinegrafistas de Hollywood” e que “a realidade dos fatos supera em muito a ficção”.

Os exemplos, cá digo eu, são numerosos: as narrativas de Heródoto, Estrabão, Marco Polo, Fernão Mendes Pinto, Cristóvão Colombo, Antonio Pigafetta, Alvar Nuñez Cabeza de Vaca, Sir Richard Burton, James Cook, Goethe, Pierre Loti, tantos outros autores. Dados todos os descontos de “invencionices” que lhes são assacadas.

Aeroceticismo

Certa vez, numa crônica, escrevi que jamais entenderei – apesar de todas as explicações científicas sobre aerodinâmica – por que avião voa.
Um avião comercial com centenas de passageiros e suas bagagens; um pesado avião de carga; um avião militar transportando tropas, jipes e tanques de guerra; a luxuosa fortaleza voadora Number One, que transporta o Presidente dos Estados Unidos – como esses bichões “avoam” sem cair?
Agora, lendo O Amor às Bibliotecas, de Jean Marie Goulemot, minha “tese” empírica ganha reforço especial. O livro foi traduzido por Maria Leonor Loureiro para a Editora Unesp (SP, 2001). Vamos encontrar, à pág. 175, este trecho:
“Ainda me lembro do impacto que teve o acidente de avião ocorrido nos Açores em 1949 e no qual desapareceram, entre outros, o boxeador Marcel Cerdan, o violinista Jacques Thibault e o pintor e gravador Bernard Boutet de Monvel. Minha avó, leitora atenta do jornal, tirou daí uma filosofia e, destinando-me a um brilhante futuro, prontificou-se a me fazer nunca viajar de avião. De seus conselhos e seus avisos, mantive um temor, ainda hoje sentido na decolagem, e uma incredulidade quanto à capacidade de voar desses pesados transportadores. Sem ousar confessá-lo, para mim o transporte aéreo parece milagre. Apesar de meus esforços racionais, permaneço um aerocético.”

Não estou, pois, sozinho em minha inocente e indouta perplexidade diante do “mistério” aeronáutico. Estou em ótima companhia. O erudito Jean Marie Goulemot, nascido na França em 1937, é um famoso escritor e bibliófilo, professor emérito da Universidade de Tours, membro do Institut Universitaire de France e autor de vários livros.

Luís XV não disse aquilo

Corre como verdade histórica uma célebre declaração petulante atribuída ao rei Luís XV (o que morreu vitimado pela varíola e sofreu uma agonia tenebrosa). Esse monarca teve, entre outras, duas amantes célebres, Madame de Pompadour e a Condessa du Barry. Essa última, tendo, imprudentemente, deixado Londres e voltado à França em busca de suas joias, seria guilhotinada, durante o período de Terror da Revolução Francesa. Mas vamos aos fatos, deixando de lado segredos de alcova e fofocas e frioleiras da corte de Versalhes.
Lendo a biografia Luís XVI, de Bernard Vincent, que Júlia da Rosa Simões traduziu para a L&PM Pocket (Porto Alegre, 2ª ed., 2011), encontro este esclarecedor trecho, à pág. 66, com referência a Luís XV, avô de Luís XVI (isso mesmo):
“O rei, sem ilusões quanto aos tempos difíceis à espera da França, não chegou a dizer, como se alegou, ‘après moi le déluge’. (*) Ele se contentou em afirmar: Tudo isso durará tanto quanto eu’ – máxima que, apesar de menos cínica, revelava um pessimismo radical e não assegurava nada de bom para aquele que reinaria depois dele.” No pé da página, o sinal de asterisco (*) informa: “Après moi le déluge”, literalmente, “Depois de mim, o dilúvio” ou “Depois de mim, o fim do mundo”. (N. T.)

Oportuno lembrar aqui que, segundo historiadores sérios e isentos, libertos de paixões ideológicas, a rainha Maria-Antonieta jamais teria pronunciado a repugnante frase, desdenhando da fome que grassava no país às vésperas da Revolução: “Se o povo não tem pão, que coma brioches!” Nunca se comprovou isso. Cheira a grossa mentira.

Foi, certamente, uma fake news criada pelos seus raivosos inimigos. E um dos motivos que a levaram à morte infamante na guilhotina, meses depois do deplorável guilhotinamento do rei.

Por Danilo Gomes - membro da Academia Mineira de Letras.