De licor de pitanga e personagens literárias

Estando na capital pernambucana, não se deve deixar de ir à Casa Museu Madalena e Gilberto Freyre, em Apipucos: ali, o escritor instalou o seu recanto. Assim como o fez Jorge Amado no bairro do Rio Vermelho, em Salvador, onde construiu a residência da família, que igualmente se visita. Ambas as casas são endereços famosos e que hoje, com o desaparecimento físico dos proprietários, perpetuam a memória dos seus sucessos e a intimidade dos seus hábitos.

A residência dos Freyre passou ultimamente por reforma, reabrindo ao público no último mês de maio, e não sei dizer como ficou disposto o acervo. Das visitas que fiz, recorda-me a impressão que faziam a coleção de edições estrangeiras de Casa Grande e Senzala e a de uma parte das inúmeras condecorações que recebeu. Aliás, o que se dá com relação a Jorge Amado ao se visitar a Fundação que leva seu nome, situada no Pelourinho, em Salvador. Mas nada se comparava à impressão, quase susto, ao entrar na sala onde Gilberto Freyre escrevia e lá se deparar com um modelo do próprio, estirado na cadeira preferida, a perna esticada sobre outra, tendo no colo o suporte de madeira em que apoiava o manuscrito, que era como escrevia. Perpetua-se a escrita de Freyre ao perpetuar-se a imagem do autor em pleno ato de escrita.

Alguns anos passados, recordo-me de, ao final da visita à Casa Museu, ter ouvido menção – e visto num frasco – o famoso licor de pitanga, receita de Freyre. Câmara Cascudo registrou que o convidado não entrava lá sem provar do licor. Entregou John dos Passos, que “entornou” um frasco inteiro da bebida, e Rosselini, um e meio. Famosa ficou a passagem com o capixaba Rubem Braga, que, em visita a Freyre, chegou, provou, fez um muxoxo e pediu uísque, como era de seu feitio. Teria sido Rubem, conta-se, o único a desaprovar a receita. Que levava, segundo o próprio desenvolvedor, cachaça “da cabeça”, pitangas bem maduras, colhidas na hora, e algo de um licor de violetas confeccionado por freiras de um convento de Garanhuns, no agreste pernambucano. Vá-se saber...
O fato é que, após o registro de Cascudo, Gilberto passou ao filho Fernando o segredo da produção do licor. Falecido precocemente este último, lá se foi a receita, ficando o licor de pitangas de Gilberto Freyre restrito à, pode- -se dizer, memória literária brasileira.

A perpetuação da memória de escritores ilustres é serviço que deve ser prestado ao público. Não por outro motivo há, aí, a participação do poder público, dando suporte à iniciativa privada. A já referida Fundação Casa de Jorge Amado promove anualmente, no Pelourinho e cercanias, uma feira literária, a Flipelô, que este ano se realizará em novembro. Fui informado de que esta edição homenageará as mulheres de Jorge Amado – vale dizer, suas personagens femininas. O que é muito bom: Gabriela, Dona Flor, Tieta, Tereza Batista, Lívia, são mulheres fortes, personagens marcantes, construídas pelo gênio do autor com o mesmo cuidado de quem desenvolve uma receita especial de licor.
A receita, como as personagens, apreciadas com o prazer que a fruição dos sentidos proporciona. Mas, e isto é incontestável, a perpetuação desse prazer no tempo é algo que só as grandes realizações literárias podem proporcionar. Muito infelizmente, aliás, no caso do extinto licor.

Por Getúlio Marcos Pereira Neves, membro do PEN Clube do Brasil.